Premissa
[...] Entremos agora na parte viva de nosso tema, mas tendo sempre presente uma preocupação metodológica. Nós somos feitos para a verdade, entendendo por verdade a correspondência entre consciência e realidade, que vimos ser a natureza do dinamismo racional. Vale repetir que o verdadeiro problema, no que concerne à procura da verdade sobre os significados últimos da vida, não é o de uma grande inteligência que se faça necessária, de um esforço especial ou de excepcionais meios para alcançá-la. A verdade última é como quando se encontra algo belo no nosso caminho: só vemos e reconhecemos se estamos atentos. O problema, portanto, é esta atenção.
1. Como proceder
Como enfrentar a experiência religiosa para colher seus fatores constitutivos? Definamos, por ora, o método que queremos usar. Pode parecer algo ainda preliminar, mas ele já identifica o objetivo.
a) Se a experiência religiosa é uma experiência, não podemos senão partir de nós mesmo para olhá-la de frente e colhê-la em seus aspectos constitutivos. Atentemos ao fato de que estas afirmações parecem evidentes, mas espero que aflore depois, discretamente, com a prova dos fatos, como não o são. Pelo contrário, justamente estas afirmações são totalmente esquecidas pela mentalidade de hoje. Portanto, se falamos de uma experiência, nós mesmos somos o ponto de partida.
b) Mas “partir de nós mesmos” é uma proposição que pode prestar-se a equívocos. Perguntemo-nos: como identifico a mim mesmo? Este “eu mesmo” pode correr o risco de ser definido a partir da imagem que tenho de mim, ou de um preconceito, abstratos tanto um como outro. Quando é que se parte verdadeiramente de si mesmo? Partir de si é realista quando a própria pessoa é olhada em ação, isto é, observada na experiência quotidiana. Não existe, de fato, um “eu” ou uma pessoa abstraída da ação que realiza, a não ser que esteja dormindo – a estranha, humorística e dramática “epoché”[2] na qual diariamente o homem deve cair –, mas, salvo quando dorme, o homem está sempre em ação. Partir de si quer dizer partir da própria pessoa surpreendida na experiência quotidiana. Então, o “material” de partida não será mais um preconceito sobre si mesmo, uma imagem artificiosa de si; não será mais uma definição da própria pessoa talvez tomada de empréstimo das idéias correntes e da ideologia dominante.
2. O eu em ação
Os fatores que nos constituem emergem, portanto, quando nos observamos em ação. É aqui que aparecem os elementos sustentadores daquilo que é o mecanismo, o sujeito humano.
Santo Tomáz diz no seu De Veritate:[3] por isto alguém percebe que existe – que vive –, pelo fato de que pensa, sente e executa outras atividades semelhantes.
Como é cheia de implicações esta afirmação! Um homem muito preguiçoso – não no sentido da “paresse”[4] da qual Leclerq fez o elogio, mas no sentido de que, podendo fazer 10, faz 0 ou 1 –, este homem está em condições tais que não pode compreender a si mesmo, ou, se o puder, o fará com muito mais dificuldade.
Imaginemos, por exemplo, um jovem que, por vários motivos, não goste de matemática e, por isso, nunca se tenha empenhado em estudá-la. Ele não está em condições de compreender que possui uma capacidade pelo menos normal neste campo. Se, pelo contrário, começa a empenhar-se, poderá verdadeiramente descobrir que tem até uma capacidade superior ao normal. Isto porque só a ação “descobre” o talento, o fator humano.
Uma mocinha de dezesseis ou dezessete anos pode dizer, ao se levantar como sempre de manhã: “eu não valo nada, não há nada que eu saiba fazer”. Mas, na tarde daquele mesmo dia, se o rapazinho de quem gosta finalmente lhe diz “eu te amo”, ela descobrirá que é diferente daquilo que o desânimo da manhã a tinha feito pensar. Provocados num envolvimento em comum, os fatores de sua personalidade vieram à tona.
Por isso, numa sociedade, um desempregado é um homem que sofre um grave atentado à consciência de si próprio: está em tais condições que a percepção de seus valores pessoais se torna sempre mais enevoada.
Mas atitudes análogas àquele “não sou capaz” da mocinha de nosso exemplo não se encontram, porém, apenas entre as expressões da adolescência. Se um homem adulto assume, em relação ao fato religioso, uma atitude que o leva a dizer: “Não sinto Deus, não tenho a exigência de enfrentar este problema”, ele se põe nesta atitude impelido por uma série de condicionamentos centrifugantes, distrativos, mas não conduzido pela razão, a qual, corretamente empenhada, não poderia eliminar este problema. De tais condicionamentos – usados como álibi – são tiradas conclusões que nada têm a ver com a formulação razoável de um juízo nascido de um compromisso real com o fato vital.
Os fatores constitutivos do humano são percebidos quando estão empenhados na ação – de outro modo, não são encontráveis, mas sim obliterados como se não existissem. Uma pessoa, portanto, que nunca se envolveu pelo fato religioso, até certo ponto, para ela, é como se este fato não existisse. Também é verdade, porém, que, por um lado, ela assume esta posição sem ter posto em ação, no horizonte de sua razão, os elementos necessários a um juízo; por outro lado, para atingir aquele ponto de condicionamento, teve que atravessar – como veremos adiante – todo um percurso não razoável de esquecimentos.
3. O compromisso com a vida
A partir daquilo a que aludimos, fica claro que quanto mais alguém está empenhado com a vida, mais percebe também em cada experiência os próprios fatores da vida.
A vida é uma trama de acontecimentos e de encontros que provoca a consciência, produzindo nela problemas em variada medida. O problema não é nada mais que a expressão dinâmica de uma reação diante dos encontros. A vida é, portanto, uma trama de problemas, um tecido de eventos reativos aos encontros mais ou menos provocantes. O significado da vida – ou das coisas mais pertinentes e importantes da vida – é um ponto de chegada possível somente para quem leva a sério a vida, seus acontecimentos e encontros, isto é, para quem está empenhado com a problemática da vida.
Estar empenhado com a vida não significa um compromisso exasperado com um ou outro de seus aspectos: o empenho com a vida nunca é parcial. O compromisso com um ou outro aspecto da vida, se não é vivido como derivação de um empenho global com a própria vida, corre o risco de tornar-se uma parcialidade desequilibrante, uma fixação ou uma histeria. Lembro um pensamento de Chesterton: “O erro é uma verdade que enlouqueceu”.
Por isso, não se confunda o empenho exigido como premissa[5] urgente de atitude, a fim de que o processo a que ele interessa possa avançar realmente, com o empenho que tem por objeto apenas um ou outro aspecto da existência.
A condição para poder surpreender em nós a existência e a natureza de um fator sustentador e decisivo como o senso religioso é o empenho com a vida inteira, na qual tudo está compreendido: amor, estudo, política, dinheiro, até a alimentação e o repouso, sem esquecer nada – nem a amizade, nem a esperança, nem o perdão, nem a raiva, nem a paciência. De fato, dentro de cada gesto está o passo em direção ao próprio destino.
4. Aspectos do compromisso
a) Entre os aspectos da vida, entre os termos do nosso compromisso com toda a existência, coloco em relevo, de imediato, um que é essencial. Ele é normalmente negligenciado, esquecido, pelo menos como tomada de consciência, e, na prática, também muito maltrato e distorcido em seu valor: é a tradição.
[...] Cada um de nós nasce de uma tradição. A natureza nos lança dentro da dinâmica da existência armando-nos de um complexo instrumento para enfrentar o ambiente. Cada homem encara a realidade circunstante dotado, por natureza, de elementos que encontra junto de si como dados, como oferecidos. A tradição é, pois, a complexa herança com a qual a natureza arma a nossa pessoa. Não porque devamos fossilizar-nos nela, mas porque temos que desenvolver – até o ponto de mudar, e profundamente – aquilo mesmo que nos foi dado.
Mas, para mudar aquilo que nos foi dado, devemos, inicialmente, agir “com” o que nos foi dado, isto é, devemos usá-lo. É por força dos valores e da riqueza que recebi que posso tornar-me, por minha vez, criativo, capaz de desenvolver aquilo que encontro ao alcance de minhas mãos; e, mais ainda, é por força dos valores e da riqueza que me foram dados que posso também mudar radicalmente o seu significado e a sua condição.
Nós dizemos que a tradição é como a hipótese de trabalho com a qual a natureza nos coloca no grande canteiro de obras da vida e da história. Somente empregando esta hipótese de trabalho poderemos, ao invés de nos debater confusamente, começar a intervir com razões, com projetos e com representações críticas sobre o ambiente e, por isso, sobre este fator extremamente interessante do ambiente que somos nós mesmos.
Eis, pois, a necessidade de uma lealdade para com a tradição: ela é requerida por um compromisso global com a existência.
Se um homem entre na vida com a sua tradição, mas a joga fora antes de tê-la realmente provado, tal atitude em relação a um instrumento tão original da natureza revela uma posição desleal para com os outros aspectos da vida, mas sobretudo para consigo mesmo e com o próprio destino. [...] É preciso que a riqueza tradicional seja aplicada à problemática da vida através do crivo crítico que em nossa primeira premissa chamamos experiência elementar.[6]
Caso contrário – isto é, omitindo aquele crivo crítico – o sujeito é alienado e fossilizado na tradição ou, entregue à violência do ambiente, acaba por abandoná-la. É o que acontece na consciência religiosa da maioria: a violência do ambiente decide por eles.
Insisto: usar criticamente este fator da vida não significa levantar dúvidas sobre os seus valores – mesmo que isto seja sugerido pela mentalidade corrente – mas usar aquela riquíssima hipótese de trabalho através do crivo de um princípio crítico que está dentro de nós, inato, porque dado originalmente, que é a experiência elementar. Se a tradição é usada assim criticamente, torna-se fator de personalidade, material para um rosto específico, para uma identidade no mundo. Goethe dizia: “Aquilo que tu herdaste de teus pais, ganha-o novamente para possuí-lo”.
b) Um segundo aspecto fundamental do empenho do eu para descobrir os fatores de que é constituído é o valor do presente.
Partir do presente é inevitável. Para aprofundar o nosso olhar no passado – distante ou próximo -, de que ponto partimos? Do presente. Para aventurarmo-nos nas arriscadas imagens do futuro, de que iniciamos? Do presente.
Este presente apenas perceptível, que de certo ponto de vista aparece a nossos olhos como um nada, um instante, quando considerado menos apressadamente, parece tão carregado e pleno de tudo que nos precedeu! Na medida em que sou eu mesmo, sou rico de tudo aquilo que me precedeu. Tomás de Aquino dizia que “anima est quodammodo omnia”: “o espírito do homem é, de algum modo, tudo”. Alguém é tanto mais pessoa humana, mais homem, quanto mais abraça e vive no instante presente tudo aquilo que o precedeu e o circunda.
O presente é sempre uma ação, não obstante toda indolência, todo cansaço e distração possíveis em seu protagonista.
[...] O homem, dizíamos, para compreender os fatores pelos quais é constituído, deve partir do presente. Seria um grave erro de perspectiva partir do passado para conhecer o presente do homem. Se, por exemplo, para indagar a respeito do que poderia ser a minha experiência religiosa, eu dissesse: “Estudemos a história das religiões, analisemos as formas primitivas da religiosidade: assim, distinguiremos os verdadeiros fatores da experiência religiosa”, tal pretensão de partir do passado significaria, porém, não conseguir evitar uma imagem “presente” do próprio passado, arriscando-se, desta forma, a identificá-lo com uma concepção fabricada de hoje. Só diante da consciência do meu presente me é possível ter em conta a fisionomia humana nos seus elementos e na sua dinâmica naturais – e, por isso, também identificáveis no passado.
Mas, se percebo agora os fatores da minha experiência de homem, posso projetar-me no passado e descobrir os mesmos fatores reconhecíveis nas páginas de Homero ou dos filósofos eleáticos,[7] ou de Platão, ou de Virgílio ou de Dante; e isto confirmará a grande unidade da estirpe[8] humana, e se tornará realmente experiência de civilização que cresce e se enriquece. Quando parte do presente para surpreender a experiência humana em seus fatores constitutivos, o estudo de passado ilumina sempre mais esse olhar que dirijo a mim mesmo. Mas, antes de ter acesso ao enigma do passado, devo ter em mãos, ainda que apenas vislumbrados, os fatores luminosos da minha personalidade presente.
[1] Luigi Giussani, O senso religioso – Primeiro volume do PerCurso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, capítulo IV Pp. 57-64.
[2] Palavra grega que significa suspensão de juízo, interrupção.
[3] “In hoc aliquis percipit se animam habere et vivere et esse, quod percipit se intelligere, sentire et alia huiusmodi opera vitae exercere”, Santo Tomás, Quaestiones disputatae de veritate, q.10 art.8 c.
[4] Palavra francesa que significa preguiça.
[5] ponto ou idéia de que se parte para armar um raciocínio.
[6] No capítulo 1, p. 24 : “Trata-se de um conjunto de exigências e evidências com as quais o homem é lançado no confronto com tudo o que existe. A natureza lança o homem na comparação universal consigo mesmo, com os outros e com as coisas, dotando-o de um conjunto de evidências e exigências originais, tão originais que tudo o que o homem diz ou faz depende delas”.
[7] Escola filosófica da Grécia antiga.
[8] 1 obsl. parte da planta que se desenvolve debaixo da terra; raiz 2 p.ext. fig. tronco familiar; genealogia.