De um Ponto Coração a outro n° 3, junho de 1993
É enlouquecedor ver a que ponto as melhores intenções são com freqüência, desencarnadas. Sonhamos com a caridade perfeita, fazemos belos discursos, escrevemos artigos inflamados, queremos viver em comunidade, queremos acolher em nossa mesa todos os pobres da criação, dizemo-nos prontos a tudo aceitar… e a menor das ocasiões, o mais irrisório desagrado e, a mais tênue palha que percebemos no olho do nosso vizinho nos fazem cair. Desejamos, pois, parar tudo. Não mais escrever. Deixar a Igreja. Partir para longe… E, se apesar de tudo nós recomeçarmos, com freqüência, rapidamente caímos nos mesmos defeitos.
É que nos enganamos totalmente sobre o amor! Acreditamos excessivamente que ele se encontra a nível da imaginação, de grandes declarações, de proezas que os jornais relatam. Toda a vida de Jesus, toda a experiência dos santos nos dizem outra coisa. O amor não se escreve com sonhos, ele não nos transporta a idéias nebulosas, ele não faz perder de vista a realidade humana. Ele não se transmite inicialmente por palavras e idéias. O amor começa pelos gestos mais humildes da vida cotidiana: um bebê a quem lavamos e alimentamos, um pobre ao qual ajudamos a achar trabalho, um ancião a quem sustentamos…
O amor de Jesus: um amor verdadeiro porque um amor encarnado.
No fim da última ceia e após ter lavado os pés dos seus apóstolos, Jesus diz: «Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais» (Jo.13, 15). Este exemplo que Jesus dá é um exemplo de amor. Jesus nos convida a reproduzir seu gesto do lava-pés e sem dúvida Ele nos convida a dar nossa vida como Ele dá seu corpo e seu sangue, e a alimentar aqueles que são nossos inimigos ou nossos traidores. Notem que Jesus nunca nos convida a reproduzir as suas palavras ou a dizer como Ele tem dito… Ele não nos convida senão a fazer aquilo que Ele mesmo fez: lavar os pés de todos e sobretudo dos mais pobres – ou seja, usar seu corpo para limpar o corpo do outro –, alimentar aqueles que têm fome – encontrar alimentos para manter o corpo do outro –, vestir aqueles que não têm nada – suprimir a vergonha do corpo nu –, cuidar dos doentes – contribuir para aliviar o sofrimento do corpo ferido –, enterrar os mortos – enterrar o corpo daquele que não tem mais vida… Assim, o amor começa por ser um corpo que se inclina sobre um corpo, um corpo que cuida de outro corpo…
Por fim, o amor se exprime em um corpo que se dá por inteiro para que outros tenham a vida. Assim, Jesus aceita sua paixão e morte como o testemunho supremo do amor. « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida… » (Jo. 15, 13). Jesus não pode ir mais longe. E isto não poderia ser senão assim, pois o dom total do seu corpo está contido na lógica do amor de Deus. Esta pequena Criança do presépio, a qual o corpo não é senão amor, não poderia ser senão o crucificado do Gólgota. Este corpo dado a Jesus pelo Pai e por Maria não podia senão entregar-se num ato de amor supremo. Era preciso que Jesus estivesse sobre a cruz…
Um amor que passa pela carne
Todos nós queremos revolucionar o mundo. Todos nós estamos tão cheios da guerra, da violência, da crueldade! Mas rapidamente nos desesperamos querendo atacar coisas que nos ultrapassam. Se fizéssemos como Jesus fez… Ele mudou o mundo descendo até o mais profundo do inferno, carregando sobre si a miséria humana, sendo carpinteiro na cidade escondida de Nazaré. Era possível imaginar tudo, menos que a salvação do mundo passaria por uma bacia e por uma toalha, pelo pão e pelo vinho dados àqueles que têm fome, duas vigas que serviriam de último suplício…
Os habitantes de uma favela onde estamos instalados me diziam em agradecimento, há algum tempo, que o bairro tinha mudado após a instalação do Ponto Coração. E eu me dizia: Como foi possível? Não fazemos mais do que brincar com as crianças, cuidar de seus « dodóis », dar uma xícara de café àqueles que passam, escutar aqueles que têm o coração pesado, caminhar pelas ruas e passar longas horas de intimidade com o Pai? Não temos grandes projetos de transformação social, não nos lançamos em nenhuma luta política… Tentamos muito humildemente encarnar nosso amor nas pequenas coisas da vida.
Finalmente, não tentamos fazer simplesmente aquilo que Jesus fez ?…