sexta-feira, janeiro 11, 2008

Como vivemos a encarnação do nosso amor?

De um Ponto Coração a outro n° 3, junho de 1993


Um amor tão freqüentemente nebuloso...


É enlouquecedor ver a que ponto as melhores intenções são com freqüência, desencarnadas. Sonhamos com a caridade perfeita, fazemos belos discursos, escrevemos artigos inflamados, queremos viver em comunidade, queremos acolher em nossa mesa todos os pobres da criação, dizemo-nos prontos a tudo aceitar… e a menor das ocasiões, o mais irrisório desagrado e, a mais tênue palha que percebemos no olho do nosso vizinho nos fazem cair. Desejamos, pois, parar tudo. Não mais escrever. Deixar a Igreja. Partir para longe… E, se apesar de tudo nós recomeçarmos, com freqüência, rapidamente caímos nos mesmos defeitos.

É que nos enganamos totalmente sobre o amor! Acreditamos excessivamente que ele se encontra a nível da imaginação, de grandes declarações, de proezas que os jornais relatam. Toda a vida de Jesus, toda a experiência dos santos nos dizem outra coisa. O amor não se escreve com sonhos, ele não nos transporta a idéias nebulosas, ele não faz perder de vista a realidade humana. Ele não se transmite inicialmente por palavras e idéias. O amor começa pelos gestos mais humildes da vida cotidiana: um bebê a quem lavamos e alimentamos, um pobre ao qual ajudamos a achar trabalho, um ancião a quem sustentamos…

O amor de Jesus: um amor verdadeiro porque um amor encarnado.
No dia do nascimento de Jesus, celebramos de uma maneira muito especial o mistério da encarnação. É cada passo que Jesus faz ao longo da sua peregrinação terrestre, que precisaria celebrar. Cada palavra que Ele pronuncia. Cada gesto que Ele realiza. Com efeito, quanto mais Ele avança para a « sua hora», na minha opinião, mais Ele manifesta a escolha extraordinária que Ele fez de vir ao nosso mundo para assumir nossa carne de pecador e permiti-la tornar-se uma carne gloriosa. Dito de outra forma, nada vai manifestar tanto a sua encarnação quanto a aceitação que Ele faz da sua paixão e da sua morte, a aceitação que Ele faz do seu corpo naquilo que há de mais terrível, ao saber que ele pode ser um terreno de sofrimentos e mesmo um cadáver.

No fim da última ceia e após ter lavado os pés dos seus apóstolos, Jesus diz: «Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais» (Jo.13, 15). Este exemplo que Jesus dá é um exemplo de amor. Jesus nos convida a reproduzir seu gesto do lava-pés e sem dúvida Ele nos convida a dar nossa vida como Ele dá seu corpo e seu sangue, e a alimentar aqueles que são nossos inimigos ou nossos traidores. Notem que Jesus nunca nos convida a reproduzir as suas palavras ou a dizer como Ele tem dito… Ele não nos convida senão a fazer aquilo que Ele mesmo fez: lavar os pés de todos e sobretudo dos mais pobres – ou seja, usar seu corpo para limpar o corpo do outro –, alimentar aqueles que têm fome – encontrar alimentos para manter o corpo do outro –, vestir aqueles que não têm nada – suprimir a vergonha do corpo nu –, cuidar dos doentes – contribuir para aliviar o sofrimento do corpo ferido –, enterrar os mortos – enterrar o corpo daquele que não tem mais vida… Assim, o amor começa por ser um corpo que se inclina sobre um corpo, um corpo que cuida de outro corpo…

Por fim, o amor se exprime em um corpo que se dá por inteiro para que outros tenham a vida. Assim, Jesus aceita sua paixão e morte como o testemunho supremo do amor. « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida… » (Jo. 15, 13). Jesus não pode ir mais longe. E isto não poderia ser senão assim, pois o dom total do seu corpo está contido na lógica do amor de Deus. Esta pequena Criança do presépio, a qual o corpo não é senão amor, não poderia ser senão o crucificado do Gólgota. Este corpo dado a Jesus pelo Pai e por Maria não podia senão entregar-se num ato de amor supremo. Era preciso que Jesus estivesse sobre a cruz…

Um amor que passa pela carne
QUANDO, em Roma, eu era responsável por nossa casa de formação, eu tinha a preocupação de que a primeira experiência apostólica de nossos estudantes não consistisse em dar catecismo ou ser guia de escoteiros. Antes me parecia que durante seus primeiros anos de teologia meus irmãos deveriam cuidar do corpo dos pobres. Assim, eles iam ajudar as Missionárias da Caridade em sua casa de São Gregório. Assim que chegavam, sem passar longas horas conversando com as irmãs, era-lhes confiado o primeiro homem que chegava da rua. Era preciso, pois, cortar-lhe os cabelos – com tesouras ancestrais! –, fazer-lhe a barba – com um barbeador que já tinha sido usado mil vezes –, colocá-lo sob o chuveiro – que muitas vezes era frio –, vestir-lhe com roupas limpas, dar-lhe de comer… A missão não era fácil, e no entanto eu nunca vi a nossa pequena comunidade tão feliz quanto a tarde em que nossos irmãos voltavam depois de viver esta experiência : eles que teriam a missão de se ocupar do corpo do Cristo, acabavam de cuidar do corpo dos pobres… Em um sentido, sua vida sacerdotal já tinha começado…

Todos nós queremos revolucionar o mundo. Todos nós estamos tão cheios da guerra, da violência, da crueldade! Mas rapidamente nos desesperamos querendo atacar coisas que nos ultrapassam. Se fizéssemos como Jesus fez… Ele mudou o mundo descendo até o mais profundo do inferno, carregando sobre si a miséria humana, sendo carpinteiro na cidade escondida de Nazaré. Era possível imaginar tudo, menos que a salvação do mundo passaria por uma bacia e por uma toalha, pelo pão e pelo vinho dados àqueles que têm fome, duas vigas que serviriam de último suplício…

Os habitantes de uma favela onde estamos instalados me diziam em agradecimento, há algum tempo, que o bairro tinha mudado após a instalação do Ponto Coração. E eu me dizia: Como foi possível? Não fazemos mais do que brincar com as crianças, cuidar de seus « dodóis », dar uma xícara de café àqueles que passam, escutar aqueles que têm o coração pesado, caminhar pelas ruas e passar longas horas de intimidade com o Pai? Não temos grandes projetos de transformação social, não nos lançamos em nenhuma luta política… Tentamos muito humildemente encarnar nosso amor nas pequenas coisas da vida.

Finalmente, não tentamos fazer simplesmente aquilo que Jesus fez ?…

« O que é a verdade ?»

De um Ponto Coração a outro, n° 42, março de 2003



QUANDO Jesus houvera declarado o senso de sua missão:

« Para isso nasci
e para isto vim ao mundo:
para dar testemunho da verdade.
Quem é da verdade escuta minha voz » (Jô 18, 37),
Pilatos exclama de repente :
« O que é a verdade? »
Em seguida, ele sai e diz aos judeus não ter achado nenhum motivo de condenação nesse homem. Mas Jesus, em breve, será crucificado...

Pilatos escutou os grandes sacerdotes, ele escutou o povo, ele escutou o Cristo. Ele não sabe mais. Sua inteligência está perturbada. O que decidir ? Sem dúvida Jesus tem razão, mas outros falam mais alto... E pensar que cabe a ele, Pilatos, julgar e julgar rápido: logo será a Páscoa!

Pilatos está diante de Jesus. Ele escutou Jesus. Ele viu Jesus. No entanto, ele não sabe reconhecer o Inocente. Ou não tem força para reconhecê-Lo. Nos conflitos, nas guerras, nas situações polêmicas, nós ficamos diante de muitas mentiras, enganos, falsificações ou omissões, como determinar a verdade ?

Eu escuto o esposo que justifica seus direitos. Eu escuto a esposa que chora seu sofrimento. E eu me pergunto : « Onde está a verdade ? »

Eu recebo o dono de uma empresa que me dá as razões de suas decisões. Eu recebo seus empregados que me dizem suas dificuldades para viver. E eu me pergunto : « Quem tem razão ? »

Eu assisto a televisão americana. Eu assisto algumas imagens dos canais iraquianos. E eu me pergunto : « Quais são as imagens verdadeiras ? »

Minha inteligência está sofrendo. Com freqüência. E, no entanto, às vezes me cabe fazer um julgamento e fazê-lo rápido ! Tomar decisões e tomá-las rápido ! Eu tremo. Eu sou, então, mais mendigo do que nunca. E eu me digo : « Felizes aqueles que não têm o que julgar ! E por que os que não estão aptos o fazem com tanta solicitude ? Quando não sabem nada além de algumas fofocas. ». Eles se arriscam tão facilmente por estarem errados! E por ferirem tão fortemente ! « Aquele que não julga não será julgado ! »

De minha parte, muitas vezes sou a favor daquele que se defende menos, admirado pelo fato de que em geral nós apoiamos quem fala mais forte, quem não cessa de se justificar. O lobo grita mais alto do que o cordeiro. O culpado freqüentemente se defende mais do que o inocente. O culpado quer salvar sua vida... e o inocente morre para que triunfe a verdade... E a verdade acaba triunfando. Após muito sangue... Após muitos sofrimentos... Um dia saberemos. Quem dos dois, Estados Unidos ou Iraque... este ou aquele...

Nesta terra como é difícil saber a verdade de cada situação, de cada acontecimento, de cada conflito ! Nós somos esquartejados, crucificados. Esquartejados, mas não aniquilados... crucificados, mas não desesperados... Pois conhecemos a verdade única. Ela se encarnou. Ela tem um rosto. Um rosto de misericórdia. Um rosto de humildade. O rosto do Cristo. Meu rochedo. A luz que me ajuda a compreender o dia de hoje. O sentido de minha existência. Ela tem um rosto. Aquele da Igreja que hoje me diz: « a guerra jamais resolverá os conflitos ». Então, eu busco a paz...

Falemos de êxito !

De um Ponto Coração a outro no 08, setembro 1994



Proprietários dos seus filhos?… ou depositários de um profundo mistério!
Não há uma mãe que,descobrindo o rosto do seu bebê,
olhe-o, maravilhada,
e comece a imaginar o que o seu filho se tornará .
Ele será grande,ele será bonito,ele será amado por todos…
Ela sonha para ele a inteligência,a riqueza, as honras…
E não se pode imaginar que seja de outra maneira.
Uma amiga próxima à minha família,desde que seu filho pôde se manter de pé,
ela já o havia revestido com o uniforme de politécnico.
E Maria, o que ela sonhavaao descobrir o rosto do seu filho Jesus?
Os pequeninos crescem…
Os pais têm seus desejos e sonhos.
As crianças têm sua liberdade e seus dons.
Ninguém recusa a seu pequerruchoalgum curso particular – exceto, talvez, aquele de religião –,alguma lição de piano,uma temporada no estrangeiro.
É preciso que ele progrida na vida e que saiba tudo!
Pode-se esquecer que uma planta morretanto por ser regada demais
ou de menos!
Todos os pais falam daquele filho que causa muita satisfação;
porém, passam sob o silêncio os outros menos dotados,mesmo se, alguns se ocupam bastante deles,para que enfim eles «decolem» !
Pobres pais !
Ao querer demais que seus filhos tenham sucesso na vida,
eles os impedem de seguir sua vida!
Conheço tantos artistas arrasados e feridos para semprepor que seus pais não acreditaram em seus dons: « Faça, antes, seus estudos de comércio, você pintará durante as férias! »
Conheço tantas vocações desviadas, por que não foi respondida a tempo:« Nunca se sabe, talvez você não tenha escutado bem o apelo de Deus…Antes, assegure o seu futuro! »
Conheço tantas donas-de-casa desinteressadas
porque os pais recusaram
o primeiro amor do seu filho:« Esta moça não é para você: ela não tem nada na vida.Procure uma outra! »

Quem se responsabilizará por estas verdadeiras derrotas?
A educação não é uma questãode desenvolvimento dos músculos,de minhoca¹,de lavagem cerebral.
A educação é um frutodo amor,ou seja, um frutodo respeito à liberdade.
Olhemos como Deus educa o seu povo!
Olhemos como o Espírito, a partir de dentro,forma cada um de nós!
Isto difere tanto dos nossos hábitos!
Deus deixa os obstáculos,permite as provas,aceita as recusas.
Deus está sempre presente,mesmo que pareça sempre ausente.
Deus conduz os seus ao deserto e não a Saint-Tropez¹.
Deus não aprisiona,não quebra,nem mesmo impede a queda.
Deus não é nem mãe super protetora,nem pai ditador,nem educador liberal.
E no entanto, Deus ama.
Ele é verdadeiro Pai.
Ele é verdadeira Mãe.
Muitos pais amam muito seus filhos, eu bem sei,mas eles os amam mal.
Ele os amamcomo se fossem seus proprietários.
Eles os amam superficialmente.
Eles os amam– perdoem-me, mas eu vi bastante –como se eles fossem seus pequenos cães para adestrar,seus pequenos gatos à engordar.
Eles os amam lhes sufocandoe depois se espantam que a vida neles seja apagada.
Eles os amam colocando neles um cordão nas patasou uma coleira no pescoço.
Eles os amam colando um rótulo em sua testa.
Eles os amam nunca conversando com elesou os deixando fazer tudo…
Como é difícil, pobres pais,amar verdadeiramente seus filhos!
Deus ama muito seus filhose os ama bem.
E então, educar?
Educar consiste em se aliar
ao amor misericordioso do Pai
à cada um de seus filhos.
Educar consiste em contemplar
o rosto de Jesus
em cada um de seus filhos.
Educar consiste em escutar
o murmúrio do Espírito
em cada um de seus filhos.
Educar não é uma técnica, nem mesmo uma arte,
é uma obra teologal.
È um ato constante de fé, de esperança e de caridade.
Educar não pode ser a obra do homem só,
é a obra do homemque se faz instrumento do desígnio de Deus.
Progredir sua vida, à medida das Bem-aventuranças!
Às vezes, eu encontro sorrisos de mães que me dão medo,sorrisos satisfeitos,sorrisos sem lágrimas.
Logo, eu os interpreto como sorrisos de mãescujo « filhos progrediram».
Eles são bem casados,eles têm uma boa situação,eles têm uma casa no campo,eles são bem vistos por todos,eles gozam de uma boa saúde,e seus filhos são inteligentes.
Verdadeiramente, isto me inquieta:
é como se nesta felicidade faltasse a verdadeira felicidade:aquela das Bem-aventuranças!
Eu penso, pois, no sorriso do Paique contempla seu Filho bem-amado.Seu único.
O que fez Ele de sua vida, Este aí?
Ele nasceu em um estábulo,
Ele escapou do furor de um rei loucofugindo no dorso de um burro, até o Egito.
Em seu retorno, Ele viveu em uma pequena vila de provínciaque tinha uma triste reputação,
Ele não escolheu as faculdades e os cursinhos pré-vestibular
preferiu seguir a profissão do seu pai,
Ele interrompeu sua carreirana idade em que começa ser conhecido
Ele mendigou em cidades e povoadose não tinha sequer uma pedra onde repousar a sua cabeça,
Ele escolheu amigosque não compreendiam grande-coisa em seus discursose que acabaram quase todos por abandoná-lo ou traí-lo,
Ele foi submisso à flagelação,à coroação de espinhos,aos insultos de todos,
Ele se fez crucificar entre dois bandidos…
Quem não se envergonharia de ter um tal filho?
Quem não teria ficado envergonhado com sua conduta?
Quem ousaria reconhecê-lo como o fruto de suas entranhas?
O Pai sabe tudo isto da sua vida e ainda muito mais.
Portanto, Ele o reconhece e diz a todos: « Este é o meu filho bem-amado a quem eu tenho dado todo o meu amor. Escutai-o! »
Ninguém progrediu sua vida como Ele.
Ele amou até o fim.
Ele salvou o mundo.
São poucos os que julgam suas vidas ou a vida dos outros por tais critérios,mesmo em pleno cristianismo, em plena Igreja!
Se julga sobre a saúde, o dinheiro, os diplomas ou a reputação.
Acredita-se abençoado por Deusquando se é rico, santo e forte.
Acredita-se amaldiçoado por Deusquando se é pobre, deficiente ou ignorante.
É desconhecer demais o bom Deus!

O único critério de êxito
Que Deus dá aos homens,
é o amor.
O protótipo de toda vida humana,
é Jesus.
Deus não faz senão uma única pergunta aos homenspara julgar a sua existência: «Tu me amas? Tu me amas verdadeiramente? Tu me amas mais que estes? »
Os pais temem que seus filhosdoem sua vida e subam na cruz : « Para trás, Satanás, tu és para mim um escândalo! »
Os pais rezam para as vocações,mas desejam que Deus se sirva dos outros!
Os pais têm medo que seus filhos se tornem santos,– é possível compreendê-los um pouco:a vida dos santos não tem nada de muito glorioso! –
Ela assemelha-se demais àquela do Filho do Homem.
Em sua grande maioria, os amigos de Deus vivem na miséria,eles sofrem angústias e toda espécie de doença,eles são caluniados, arrastados na lama,eles têm uma saúde deplorável,eles têm que trabalhar como burros de carga e jamais podem ter um tempo de descanso,eles conhecem uma longa agonia e morrem abandonados por todos, mesmo dando sua vida por todos
Quem queria para si uma tal vida?
Quem queria para os seus amigos uma tal vida?Aquele que ama o Senhor!
Escutemos!
Educar uma criança,
não é fazer tudo para que ela seja repleta de diplomas– que valor eles terão no céu? –,
é tudo fazer para que ela encontre Deus,para que ela viva na intimidade do seu Pai,para que ela diga « sim» quando Deus lhe pede a sua vida.
« O centro da vida, não é progredir, mas reconhecer Alguém. Não é um êxito, qualquer que seja mas o reconhecimento de uma Presença: tal é o problema cristão em relação àquele de toda filosofia e de toda religião. […] Nossa salvação, é uma Presença a reconhecer: não é algo a fazer, mas um amor ². »
Portanto, não tenhamos mais medo!
Deus chama meu filho como missionário,Ele o protegerá.Ele estará com ele.
Deus não abandona os seus!
Educar seus filhos,é lhes permitir encontrar o Mistério.
Educar seus filhos,é nos permitir reencontrá-los no Reino.
Progredir sua vida,é dá-la à Jesus!

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1 Saint Tropez – Cidade turística da Costa Azul francesa.
2 Dom Giussani,Reconhecer uma presença.

Ser

SER

De um Ponto Coração a outro n° 35, junho de 2001



Desde a fundação da Obra, uma certeza sempre nos habitou: a necessidade de desenvolver mais nos Amigos das Crianças, a qualidade de ser, a intensidade da presença, do que a quantidade de ações ou mesmo da eficácia do compromisso. Esta concepção, às vezes foi resumida em termos inadequados e errôneos: « Em Pontos Coração não se faz nada, somos! » Somente algumas horas passadas no Ponto Coração Santa Mônica, de Dakar¹, onde as crianças não param de entrar e sair, ou no Ponto Coração Sagrada Família, de Simões Filho, são suficientes para provar que em qualidade de ócio nossos Amigos das Crianças não levariam o primeiro prêmio. E se esta prova não fosse suficiente, poderia ainda, para convencer-se da generosidade do seu despojamento, olhar seus rostos cansados à noite de cada dia. Parecem aqueles de mães de família numerosa, muito numerosa…

Se pode, então, estar tranqüilo: os Amigos das Crianças trabalham, correm de um lugar a outro, às vezes se esgotam nesta tarefa. Os apadrinhamentos que eles recebem não os encorajam em nada à preguiça! E é importante, porque a caridade não dorme. Ela é solícita, ela é viva, ela se encarna! Mas, aquilo que sempre nos interessou mais do que estes múltiplos trâmites que cumprem os nossos Amigos, do que suas visitas incessantes, do que os seus serviços de todo gênero, são as razões que levam os jovens a se darem. Ou ainda: é a qualidade do seu amor que torna suas obras realmente fecundas. Mesmo quando se compromete com as melhores intenções – em Ponto Coração, também no matrimônio, na vida religiosa, na empresa – rapidamente pode acontecer, que tomado pelo fluxo do dia, ir à deriva e não mais ver o ideal que nos colocou em movimento. Torna-se então, uma máquina que produz serviços… um ativista que calcula os resultados… um enviado que esquece Aquele que o enviou e as razões para as quais ele foi enviado… É preciso então, rapidamente, voltar à fonte para não desanimar e não pensar só na despedida. E para nós, a fonte, é sempre a oração que consiste em contemplar amorosamente o rosto de Jesus.

Quanto mais o Santo Padre envelhece, mais ele lembra aos cristãos esta verdade: aquilo que importa na obra de evangelização é mostrar o Cristo, mais do que falar d’Ele. E seu compromisso é cada vez para nós um vivo encorajamento a prosseguir e a desenvolver a pedagogia que escolhemos desde o início da Obra: « Na causa do Reino, não há tempo para olhar para trás, menos ainda para dar-se à preguiça. Há muito trabalho à nossa espera. […] Mas é muito importante que tudo o que com a ajuda de Deus nos propusemos, esteja profundamente radicado na contemplação e na oração.O nosso tempo é vivido em contínuo movimento que muitas vezes chega à agitação, caindo-se facilmente no risco de
“fazer por fazer”. Há que resistir a esta tentação, procurando o “ser” acima do “fazer”.² »

Através de tais afirmações, João Paulo II lembra ao homem que sua nobreza consiste em sua capacidade de contemplar e, ao cristão, que « nosso testemunho seria excessivamente pobre, se não fôssemos primeiro contemplativos do seu rosto [do Cristo] ³ ». É esta contemplação que lhe revela o sentido de cada acontecimento, a beleza de cada rosto, o preço de cada homem: « Se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar 4 » : os famintos, os sedentos, os estrangeiros, os doentes, os prisioneiros…

« Duc in altum » : isso é palavra de ordem que João Paulo II lança à Igreja na entrada do terceiro milênio. « Faz-te ao largo” » Mas de que largo se trata? O Papa o explica: trata-se « não somente de um compromisso missionário mais profundo, porém, mais ainda, de um compromisso contemplativo intenso 5 ». Indo assim ao largo, o ser tomará a supremacia sobre o fazer e seremos plenos de alegria!

1. Dakar : Capital do Senegal
2. João Paulo II, Novo millenio ineunte, nº 15