sexta-feira, dezembro 29, 2006

UMA VOLTA AO PORQUE

SEGUNDO ENCONTRO


Esse capítulo é o capítulo-chave do livro todo. Pois nele, Giussani tenta fazer nos “tocar do dedo” o senso religioso em nossa vida, isto é, tenta levar cada um de nós a dizer: “é verdade, eu também vivo isso”. No primeiro ponto, ele nos mostra que esse tal de “senso religioso” não é senão esse não sei o que que provoca em nós aquelas perguntas, das quais nos falava o padre Guilherme, na introdução que acabamos de ler. Giussani as exemplifica com esse poema de Leopardi: quem de nós nunca “filosofou”, diante da imensidão de um céu estrelado, ou diante da infinitude do mar, da enorme potência de uma trovoada, ou num evento importante da vida, tal como o nascimento de uma criança, ou a morte de um ente querido? Giussani nos diz que essas perguntas são características do homem: nenhum animal as tem.
No ponto 2, o autor afirma que esse senso religioso é o fundo mais profundo do nosso ser, que ele está por trás de todo o que desejamos, fazemos ou dizemos, que ele é a raiz de todo nosso agir. Então, se todo o que fazemos vem dele, de um certo jeito, ele vem primeiro.
No seu terceiro ponto, exigência de uma resposta total, Giussani diz duas coisas importantes. A primeira (que vem no final do ponto), é que esse senso religioso, se ele aparece através das perguntas últimas, então ele se confunde com a exigência nossa de sentido, com nossa vontade insaciável de saber o porquê de todo: porque isso? O que significa? O que está por trás? A segunda coisa, é que só poderíamos ficar tranqüilos com essas perguntas se achávamos a resposta certa para todas, se não tivesse mais a mínima pergunta esquecida, em outras palavras, se podíamos achar a resposta total.
E no último ponto estudado hoje, o autor observa justamente que nunca estamos plenamente satisfeitos com as respostas encontradas. Quando pensamos achar uma, logo aparece outra pergunta atrás...
Esse assunto será continuado ainda por dois encontros.



O SENSO RELIGIOSO: SUA NATUREZA[1]


1. O nível de certas perguntas


O fator religioso representa a natureza de nosso eu enquanto se exprime em certas perguntas: “Qual é o significado último da existência?” “Por que existe a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena viver?”. Ou, a partir de outro ponto de vista: “De que e para que é feita a realidade?”. O senso religioso situa-se dentro da realidade do nosso eu ao nível destas perguntas: coincide com o compromisso radical de nosso eu com a vida, que se mostra nestas perguntas.
Um dos textos literários mais belos é aquele em que “o pastor errante na Ásia” de Leopardi repropõe à Lua, que parece dominar o infinito do céu e da terra, as perguntas do horizonte também sem fim:

E sempre te vejo
Estar tão muda assim sobre o deserto,
Que em limite incerto o céu confina,
Ou sobre o meu rebanho,
Indo, indo, a seguir-me bem de perto,
E olhando o céu de estrelas sobre as rochas,
Digo-me a mim, pensando:
Para que tantas tochas?
Que fazem o ar infinito e essa profunda,
Azul serenidade?
Que quer dizer a solidão imensa?
E eu, que sou?

Desde os tempos mais antigos, uma das comparações mais usadas para identificar a fragilidade e o caráter enigmático último da vida humana são as folhas, folhas secas caídas no outono. Podemos dizer que o senso religioso é a característica que qualifica o nível humano da natureza e se identifica com a intuição inteligente e a emoção dramática com que o homem, olhando a própria vida e a de seus semelhantes, diz: “Somos como folhas...”. “Longe do seu ramo, pobre folha frágil, onde irás?”. Mas, seja como for, a retomada leopardiana do poema de Arnault tem antepassados bem conhecidos não só na literatura grega, mas também em todas as literaturas do mundo.
O senso religioso está no nível destas emoções, como eu dizia, inteligentes e dramáticas, inevitáveis – mesmo se o clamor ou a obtusidade[2] da vida social pareçam querer silenciá-las.
E tudo se concerta para nos calar, em parte
Por vergonha, talvez, em parte por indizível esperança.
(R. M. Rilke)


2. No fundo do nosso ser


Estas perguntas se enraízam profundamente no nosso ser: são inextirpáveis
[3], pois constituem como que o tecido de que é feito.
São Paulo, no discurso do Areópago, relatado no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, quando disputa com os antenienses a respeito da procura de uma resposta às perguntas últimas, que fazem falar o fundo do nosso ser, identifica-as com a energia que domina toda a mobilidade humana, provocando-a, sustentando-a, redefinindo-a continuamente. Esta mobilidade compreende inclusive a própria mobilidade dos povos e seu vagar pelo mundo “em busca do deus”, dele “que dá a cada um a vida, a respiração, tudo”.
Qualquer movimento do homem tem esta fonte, esta raiz enérgica, e é secundário e dependente em relação a esta última, original, radical e enigmática fonte.


3. A exigência de uma resposta total


Naquelas perguntas, o aspecto decisivo é oferecido pelos adjetivos e advérbios: qual é o sentido último da vida no fundo; no fundo, de que é feita a realidade; para que vale verdadeiramente a pena que eu exista, que a realidade exista?
São perguntas que esgotam toda a energia de procura da razão. São perguntas que exigem uma resposta total, que abranja todo o horizonte da razão, esgotando toda a “categoria da possibilidade”.
Existe, com efeito, uma coerência da razão, que só se detém quando chega a se exaurir totalmente.
... Sob o intenso azul do céu
um ou outro pássaro de mar voa
nunca se detém
porque todas a imagens
têm a escrita “mais além”
(E. Montale)

Se o sentido da realidade se exaurisse[4] somente após responder a mil perguntas e o homem encontrasse a resposta para novecentas e noventa e nove, estaria tão inquieto e insatisfeito como no começo. Existe no Evangelho uma referência importante a esta dimensão: “Que importa ao homem possuir todo o mundo, se perde o significado de si? Que dará o homem em troca de si?”
Este “si” não é outra coisa senão a exigência clamorosa, indestrutível e substancial de afirmar o significado de tudo. É precisamente assim que o senso religioso define o eu: o lugar da natureza onde é afirmado o significado do todo.
A urgência de afirmar este significado pode ser comparada com a experiência do sentimento humano do amor, descrita por Leopardi em seu poema “Pensamento Dominante”:

Dulcíssimo, potente
Dominador do todo em minha mente:
Terrível, mas amado
Dom do céu; companheiro
Dos dias meus sem fim,
Pensamento que voltas sempre a mim.
Do ser só mistério
Quem não fala? Sua força em nossos peitos
Quem não sentiu? (...)

Quão solitária a minha
Mente se viu tornada
Quando tu a tomaste por morada!
Fugiram qual relâmpago desperto
Que o céu não mais protela,
Meus outros pensamentos. E qual torre
No imenso de um deserto,
Estás gigante e só no centro dela.


4. Desproporção à resposta total


Quanto mais avançamos na tentativa de responder a tais perguntas, mais percebemos a sua potência e a nossa desproporção em relação à resposta total. É o tema dramático dos “Pensamentos” de Leopardi :

“Não poder estar satisfeito com nenhuma coisa terrena, nem, por assim dizer, com a terra inteira; considerar a amplitude inestimável do espaço, o número e a construção maravilhosa dos mundos, a achar que tudo é pouco e pequeno para a capacidade de sua própria alma; imaginar infinito o número dos mundos, e o universo infinito, e sentir que a alma e o nosso desejo seriam ainda maiores do que tão grande universo; e sempre acusar as coisas de insuficiência e maldade, e sentir carência e vazio e, portanto, tédio, parece-me o maior sinal de grandeza e nobreza que se vê na natureza humana.”

A inexorabilidade
[5] das perguntas ressalta a contradição entre o ímpeto da exigência e a limitação da medida humana na procura. No entanto, lemos com gosto um texto à medida que a vibração destas perguntas e a dramaticidade lhe sustentam a temática.
Se a força e a agudeza da sensibilidade de Leopardi nos comovem, é porque manifestam algo que somos: uma contradição insolúvel; o "mistério eterno do nosso ser", do poema "Sobre o retrato de uma bela mulher esculpido sobre seu monumento sepulcral":

Desejos infinitos
Visões e alumbramento
Cria no pensamento,
Por força inata, a sábia harmonia;
Donde por mar que é só delícia, arcano
Erra o espírito humano,
Quase como, a brincar,
Um nadador audaz pelo oceano:
Mas mínima anarquia Que fira o ouvido, logo
Torna‑se nada o Éden que existia.

Como podes, ó natureza humana,
Se em tudo és frágil,
vil, se és pó e sombra,
Tão elevados ter os sentimentos?
E como, se ainda em parte nobre és,
Podem tão facilmente os teus mais dignos
Pensamentos e os mais altos impulsos,
Ser por tão baixas causas despertados
E ao mesmo tempo extintos?

[1] GIUSSANI, Luigi, O senso religioso, Capítulo V, 2a edição – Edit. Companhia Ilimitada
[2] caráter ou comportamento daquele que é insensível, estúpido.
[3] que não se pode extirpar, arrancar.
[4] Exaurir: despejar(-se) até a última gota, esgotar(-se) inteiramente.
[5] Qualidade de que não cede ou se abala diante de súplicas e rogos.

terça-feira, dezembro 05, 2006

UMA VOLTA AO PORQUE

PRIMEIRO ENCONTRO

O SENSO RELIGIOSO: O PONTO DE PARTIDA[1]

Premissa

[...] Entremos agora na parte viva de nosso tema, mas tendo sempre presente uma preocupação metodológica. Nós somos feitos para a verdade, entendendo por verdade a correspondência entre consciência e realidade, que vimos ser a natureza do dinamismo racional. Vale repetir que o verdadeiro problema, no que concerne à procura da verdade sobre os significados últimos da vida, não é o de uma grande inteligência que se faça necessária, de um esforço especial ou de excepcionais meios para alcançá-la. A verdade última é como quando se encontra algo belo no nosso caminho: só vemos e reconhecemos se estamos atentos. O problema, portanto, é esta atenção.


1. Como proceder

Como enfrentar a experiência religiosa para colher seus fatores constitutivos? Definamos, por ora, o método que queremos usar. Pode parecer algo ainda preliminar, mas ele já identifica o objetivo.
a) Se a experiência religiosa é uma experiência, não podemos senão partir de nós mesmo para olhá-la de frente e colhê-la em seus aspectos constitutivos. Atentemos ao fato de que estas afirmações parecem evidentes, mas espero que aflore depois, discretamente, com a prova dos fatos, como não o são. Pelo contrário, justamente estas afirmações são totalmente esquecidas pela mentalidade de hoje. Portanto, se falamos de uma experiência, nós mesmos somos o ponto de partida.
b) Mas “partir de nós mesmos” é uma proposição que pode prestar-se a equívocos. Perguntemo-nos: como identifico a mim mesmo? Este “eu mesmo” pode correr o risco de ser definido a partir da imagem que tenho de mim, ou de um preconceito, abstratos tanto um como outro. Quando é que se parte verdadeiramente de si mesmo? Partir de si é realista quando a própria pessoa é olhada em ação, isto é, observada na experiência quotidiana. Não existe, de fato, um “eu” ou uma pessoa abstraída da ação que realiza, a não ser que esteja dormindo – a estranha, humorística e dramática “epoché”
[2] na qual diariamente o homem deve cair –, mas, salvo quando dorme, o homem está sempre em ação. Partir de si quer dizer partir da própria pessoa surpreendida na experiência quotidiana. Então, o “material” de partida não será mais um preconceito sobre si mesmo, uma imagem artificiosa de si; não será mais uma definição da própria pessoa talvez tomada de empréstimo das idéias correntes e da ideologia dominante.


2. O eu em ação

Os fatores que nos constituem emergem, portanto, quando nos observamos em ação. É aqui que aparecem os elementos sustentadores daquilo que é o mecanismo, o sujeito humano.
Santo Tomáz diz no seu De Veritate:
[3] por isto alguém percebe que existe – que vive –, pelo fato de que pensa, sente e executa outras atividades semelhantes.
Como é cheia de implicações esta afirmação! Um homem muito preguiçoso – não no sentido da “paresse”
[4] da qual Leclerq fez o elogio, mas no sentido de que, podendo fazer 10, faz 0 ou 1 –, este homem está em condições tais que não pode compreender a si mesmo, ou, se o puder, o fará com muito mais dificuldade.
Imaginemos, por exemplo, um jovem que, por vários motivos, não goste de matemática e, por isso, nunca se tenha empenhado em estudá-la. Ele não está em condições de compreender que possui uma capacidade pelo menos normal neste campo. Se, pelo contrário, começa a empenhar-se, poderá verdadeiramente descobrir que tem até uma capacidade superior ao normal. Isto porque só a ação “descobre” o talento, o fator humano.
Uma mocinha de dezesseis ou dezessete anos pode dizer, ao se levantar como sempre de manhã: “eu não valo nada, não há nada que eu saiba fazer”. Mas, na tarde daquele mesmo dia, se o rapazinho de quem gosta finalmente lhe diz “eu te amo”, ela descobrirá que é diferente daquilo que o desânimo da manhã a tinha feito pensar. Provocados num envolvimento em comum, os fatores de sua personalidade vieram à tona.
Por isso, numa sociedade, um desempregado é um homem que sofre um grave atentado à consciência de si próprio: está em tais condições que a percepção de seus valores pessoais se torna sempre mais enevoada.
Mas atitudes análogas àquele “não sou capaz” da mocinha de nosso exemplo não se encontram, porém, apenas entre as expressões da adolescência. Se um homem adulto assume, em relação ao fato religioso, uma atitude que o leva a dizer: “Não sinto Deus, não tenho a exigência de enfrentar este problema”, ele se põe nesta atitude impelido por uma série de condicionamentos centrifugantes, distrativos, mas não conduzido pela razão, a qual, corretamente empenhada, não poderia eliminar este problema. De tais condicionamentos – usados como álibi – são tiradas conclusões que nada têm a ver com a formulação razoável de um juízo nascido de um compromisso real com o fato vital.
Os fatores constitutivos do humano são percebidos quando estão empenhados na ação – de outro modo, não são encontráveis, mas sim obliterados como se não existissem. Uma pessoa, portanto, que nunca se envolveu pelo fato religioso, até certo ponto, para ela, é como se este fato não existisse. Também é verdade, porém, que, por um lado, ela assume esta posição sem ter posto em ação, no horizonte de sua razão, os elementos necessários a um juízo; por outro lado, para atingir aquele ponto de condicionamento, teve que atravessar – como veremos adiante – todo um percurso não razoável de esquecimentos.


3. O compromisso com a vida

A partir daquilo a que aludimos, fica claro que quanto mais alguém está empenhado com a vida, mais percebe também em cada experiência os próprios fatores da vida.
A vida é uma trama de acontecimentos e de encontros que provoca a consciência, produzindo nela problemas em variada medida. O problema não é nada mais que a expressão dinâmica de uma reação diante dos encontros. A vida é, portanto, uma trama de problemas, um tecido de eventos reativos aos encontros mais ou menos provocantes. O significado da vida – ou das coisas mais pertinentes e importantes da vida – é um ponto de chegada possível somente para quem leva a sério a vida, seus acontecimentos e encontros, isto é, para quem está empenhado com a problemática da vida.
Estar empenhado com a vida não significa um compromisso exasperado com um ou outro de seus aspectos: o empenho com a vida nunca é parcial. O compromisso com um ou outro aspecto da vida, se não é vivido como derivação de um empenho global com a própria vida, corre o risco de tornar-se uma parcialidade desequilibrante, uma fixação ou uma histeria. Lembro um pensamento de Chesterton: “O erro é uma verdade que enlouqueceu”.
Por isso, não se confunda o empenho exigido como premissa
[5] urgente de atitude, a fim de que o processo a que ele interessa possa avançar realmente, com o empenho que tem por objeto apenas um ou outro aspecto da existência.
A condição para poder surpreender em nós a existência e a natureza de um fator sustentador e decisivo como o senso religioso é o empenho com a vida inteira, na qual tudo está compreendido: amor, estudo, política, dinheiro, até a alimentação e o repouso, sem esquecer nada – nem a amizade, nem a esperança, nem o perdão, nem a raiva, nem a paciência. De fato, dentro de cada gesto está o passo em direção ao próprio destino.


4. Aspectos do compromisso

a) Entre os aspectos da vida, entre os termos do nosso compromisso com toda a existência, coloco em relevo, de imediato, um que é essencial. Ele é normalmente negligenciado, esquecido, pelo menos como tomada de consciência, e, na prática, também muito maltrato e distorcido em seu valor: é a tradição.
[...] Cada um de nós nasce de uma tradição. A natureza nos lança dentro da dinâmica da existência armando-nos de um complexo instrumento para enfrentar o ambiente. Cada homem encara a realidade circunstante dotado, por natureza, de elementos que encontra junto de si como dados, como oferecidos. A tradição é, pois, a complexa herança com a qual a natureza arma a nossa pessoa. Não porque devamos fossilizar-nos nela, mas porque temos que desenvolver – até o ponto de mudar, e profundamente – aquilo mesmo que nos foi dado.
Mas, para mudar aquilo que nos foi dado, devemos, inicialmente, agir “com” o que nos foi dado, isto é, devemos usá-lo. É por força dos valores e da riqueza que recebi que posso tornar-me, por minha vez, criativo, capaz de desenvolver aquilo que encontro ao alcance de minhas mãos; e, mais ainda, é por força dos valores e da riqueza que me foram dados que posso também mudar radicalmente o seu significado e a sua condição.
Nós dizemos que a tradição é como a hipótese de trabalho com a qual a natureza nos coloca no grande canteiro de obras da vida e da história. Somente empregando esta hipótese de trabalho poderemos, ao invés de nos debater confusamente, começar a intervir com razões, com projetos e com representações críticas sobre o ambiente e, por isso, sobre este fator extremamente interessante do ambiente que somos nós mesmos.
Eis, pois, a necessidade de uma lealdade para com a tradição: ela é requerida por um compromisso global com a existência.
Se um homem entre na vida com a sua tradição, mas a joga fora antes de tê-la realmente provado, tal atitude em relação a um instrumento tão original da natureza revela uma posição desleal para com os outros aspectos da vida, mas sobretudo para consigo mesmo e com o próprio destino. [...] É preciso que a riqueza tradicional seja aplicada à problemática da vida através do crivo crítico que em nossa primeira premissa chamamos experiência elementar.
[6]
Caso contrário – isto é, omitindo aquele crivo crítico – o sujeito é alienado e fossilizado na tradição ou, entregue à violência do ambiente, acaba por abandoná-la. É o que acontece na consciência religiosa da maioria: a violência do ambiente decide por eles.
Insisto: usar criticamente este fator da vida não significa levantar dúvidas sobre os seus valores – mesmo que isto seja sugerido pela mentalidade corrente – mas usar aquela riquíssima hipótese de trabalho através do crivo de um princípio crítico que está dentro de nós, inato, porque dado originalmente, que é a experiência elementar. Se a tradição é usada assim criticamente, torna-se fator de personalidade, material para um rosto específico, para uma identidade no mundo. Goethe dizia: “Aquilo que tu herdaste de teus pais, ganha-o novamente para possuí-lo”.

b) Um segundo aspecto fundamental do empenho do eu para descobrir os fatores de que é constituído é o valor do presente.
Partir do presente é inevitável. Para aprofundar o nosso olhar no passado – distante ou próximo -, de que ponto partimos? Do presente. Para aventurarmo-nos nas arriscadas imagens do futuro, de que iniciamos? Do presente.
Este presente apenas perceptível, que de certo ponto de vista aparece a nossos olhos como um nada, um instante, quando considerado menos apressadamente, parece tão carregado e pleno de tudo que nos precedeu! Na medida em que sou eu mesmo, sou rico de tudo aquilo que me precedeu. Tomás de Aquino dizia que “anima est quodammodo omnia”: “o espírito do homem é, de algum modo, tudo”. Alguém é tanto mais pessoa humana, mais homem, quanto mais abraça e vive no instante presente tudo aquilo que o precedeu e o circunda.
O presente é sempre uma ação, não obstante toda indolência, todo cansaço e distração possíveis em seu protagonista.
[...] O homem, dizíamos, para compreender os fatores pelos quais é constituído, deve partir do presente. Seria um grave erro de perspectiva partir do passado para conhecer o presente do homem. Se, por exemplo, para indagar a respeito do que poderia ser a minha experiência religiosa, eu dissesse: “Estudemos a história das religiões, analisemos as formas primitivas da religiosidade: assim, distinguiremos os verdadeiros fatores da experiência religiosa”, tal pretensão de partir do passado significaria, porém, não conseguir evitar uma imagem “presente” do próprio passado, arriscando-se, desta forma, a identificá-lo com uma concepção fabricada de hoje. Só diante da consciência do meu presente me é possível ter em conta a fisionomia humana nos seus elementos e na sua dinâmica naturais – e, por isso, também identificáveis no passado.
Mas, se percebo agora os fatores da minha experiência de homem, posso projetar-me no passado e descobrir os mesmos fatores reconhecíveis nas páginas de Homero ou dos filósofos eleáticos,
[7] ou de Platão, ou de Virgílio ou de Dante; e isto confirmará a grande unidade da estirpe[8] humana, e se tornará realmente experiência de civilização que cresce e se enriquece. Quando parte do presente para surpreender a experiência humana em seus fatores constitutivos, o estudo de passado ilumina sempre mais esse olhar que dirijo a mim mesmo. Mas, antes de ter acesso ao enigma do passado, devo ter em mãos, ainda que apenas vislumbrados, os fatores luminosos da minha personalidade presente.



[1] Luigi Giussani, O senso religioso – Primeiro volume do PerCurso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, capítulo IV Pp. 57-64.
[2] Palavra grega que significa suspensão de juízo, interrupção.
[3] “In hoc aliquis percipit se animam habere et vivere et esse, quod percipit se intelligere, sentire et alia huiusmodi opera vitae exercere”, Santo Tomás, Quaestiones disputatae de veritate, q.10 art.8 c.
[4] Palavra francesa que significa preguiça.
[5] ponto ou idéia de que se parte para armar um raciocínio.
[6] No capítulo 1, p. 24 : “Trata-se de um conjunto de exigências e evidências com as quais o homem é lançado no confronto com tudo o que existe. A natureza lança o homem na comparação universal consigo mesmo, com os outros e com as coisas, dotando-o de um conjunto de evidências e exigências originais, tão originais que tudo o que o homem diz ou faz depende delas”.
[7] Escola filosófica da Grécia antiga.
[8] 1 obsl. parte da planta que se desenvolve debaixo da terra; raiz 2 p.ext. fig. tronco familiar; genealogia.

sexta-feira, novembro 03, 2006

EdC - Novembro 2006

Três minutos de silêncio

(D´un Point-Coeur à l´autre, n° 46, março de 2004)

Nesta segunda-feira, como sinal de respeito pelas vítimas do terrível atentado de Madri, foi feito, em toda a Europa, três minutos de silêncio. Em muitas cidades, a circulação foi interrompida, em supermercados a música cessou e os caixas pararam seus trabalhos, nas usinas as máquinas pararam, nas escolas e universidade os professores se calaram. Três minutos de silêncio! Três minutos de silêncio todos juntos! Três minutos para lembrar-se… Três minutos para pensar… Três minutos para rezar… estes três minutos onde o tempo parece estar suspenso foram um fruto inesperado – ao menos houve um! – da tragédia espanhola. Desde então, eu não paro de sonhar que tais momentos de silêncio sejam regularmente dados, fora os dramas particulares, à toda humanidade junta. É que os homens de hoje têm necessidade de silêncio como o têm de oxigênio! Eles têm necessidade de parar! Eles têm necessidade de refletir gratuitamente. Uma tal decisão poderia prevenir muitas outras tragédias.

Três minutos para lembrar-se. Os acontecimentos se encadeiam uns aos outros. Como para destruir o tempo ao qual só o silêncio dá toda sua densidade. Alternativamente o SRAS1, um tremor de terra, a queda da Bolsa, os tumultos haitianos tomam como de assalto os boletins de informação do mundo inteiro… E às vezes isto de que falamos na véspera com tanto clamor parece não mais existir no dia seguinte. Uma palavra é o máximo que ainda se pode ouvir. E portanto, o Haiti e seus problemas existem ainda, a epidemia do SRAS talvez não seja definitivamente vencida… é preciso lentamente voltar aos acontecimentos para que eles falem, para que eles entreguem seus segredos, para que eles ensinem. Os acontecimentos do mundo e os acontecimentos de minha vida. É preciso lembrar-se! Que a memória possa prevenir os dramas de amanhã…

Três minutos para pensar. Em meio às prateleiras do supermercado, em meio às máquinas e aos computadores, em pleno tráfico, três minutos para refletir o sentido de tudo isto, aquilo que constitui além de tantos barulhos e movimentos, o essencial, o caminho que a humanidade toma. E pensá-lo na presença de corpos espedaçados dos Madri e de sua família em luto ou… de gestos de ternura de Madre Teresa. Para compreender que não existem atos isolados, palavras sem amanhã, pensamentos neutros, que tudo tem um sentido… membros de um mesmo corpo, somos intensamente ligados uns aos outros.

Três minutos para rezar. Pensar em todos estes acontecimentos que tão rápido se encadeiam e que nos colocam perante nossa impotência. Impotência, para bem se compreender o porquê. Impotência em dominar o futuro. Impotência para gerar hoje o shoah2 do povo judeu, o massacre cambodiano, a catástrofe de Chernobil, a guerra do Iraque… Nós os sabemos: a situação não é para manter-se imóveis » , quem quer que sejamos. É preciso agir, é preciso falar, é preciso lutar. Mas, o que dizer? Como agir? Lutar em que sentido? É preciso agir, e lutar, e falar em nome de Jesus Cristo. Ele o sabe. Se a história se desvia, não é à força de se esquecer do Mestre? É preciso adorar Deus. Para nos ajudar a compreender nosso lugar. É preciso tornar-nos mendigos de Deus. Para receber nosso pão de cada dia. Ele é o Pai, nós somos seus filhos salvos pela Paixão do Seu Filho. E isto não é somente uma realidade que concerne à vida privada de cada um. É uma realidade pública e objetiva a que o mundo inteiro está chamado a reconhecer para melhor corresponder ao seu destino.


Atentados, nunca mais! Silêncio, verdadeiro silêncio, cada vez mais!

Pe. Thierry de Roucy

1. vírus da gripe do frango – na Ásia

2. Palavra judaica que significa exterminação

sexta-feira, setembro 29, 2006

EdC - Outubro 2006

MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI PARA O LXXX DIA MISSIONÁRIO MUNDIAL(Domingo 22 de Outubro de 2006)

"A caridade, alma da missão"


Amados irmãos e irmãs

1. O Dia Missionário Mundial, que celebraremos no domingo, dia 22 do próximo mês de Outubro, oferece a oportunidade para reflectir este ano sobre o tema: "A caridade, alma da missão". Se não for orientada pela caridade, isto é, se não brotar de um profundo acto de amor divino, a missão corre o risco de se reduzir a uma mera actividade filantrópica e social. Com efeito, o amor que Deus nutre por cada pessoa constitui o coração da experiência e do anúncio do Evangelho e, por sua vez, quantos o acolhem tornam-se suas testemunhas. O amor de Deus, que dá vida ao mundo, é o amor que nos foi concedido em Jesus, Palavra de salvação, ícone perfeito da misericórdia do Pai celeste. Então, a mensagem salvífica poderia ser oportunamente resumida com as palavras do Evangelista João: "E o amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho unigénito para que, por Ele, tivéssemos a vida" (1 Jo 4, 9). O mandamento de difundir o anúncio deste amor foi confiado por Jesus aos Apóstolos depois da sua ressurreição, e os Apóstolos, interiormente transformados no dia do Pentecostes pelo poder do Espírito Santo, começaram a dar testemunho do Senhor morto e ressuscitado. A partir de então, a Igreja continua esta mesma missão, que constitui para todos os fiéis um compromisso irrenunciável e permanente.

2. Por conseguinte, cada comunidade cristã é chamada a fazer conhecer Deus, que é Amor. Foi sobre este mistério da nossa fé que desejei deter-me para reflectir na Encíclica "Deus caritas est". Com o seu amor, Deus permeia toda a criação e a história humana. Nas origens, o homem saiu das mãos do Criador como fruto de uma iniciativa de amor. Depois, o pecado ofuscou nele a marca divina. Enganados pelo maligno, os progenitores Adão e Eva faltaram ao relacionamento de confiança com o seu Senhor, cedendo à tentação do maligno, que neles infundiu a suspeita de que Ele era um rival e queria limitar a sua liberdade. Assim, ao amor divino gratuito eles preferiram-se a si mesmos, persuadidos de que desde modo confirmavam o seu livre arbítrio. Consequentemente, terminaram por perder a felicidade original e experimentaram a amargura da tristeza do pecado e da morte. Mas Deus não os abandonou e prometeu-lhes, bem como aos seus descendentes, a salvação, preanunciando o envio do seu Filho unigénito, Jesus, que teria revelado na plenitude dos tempos o seu amor de Pai, um amor capaz de resgatar toda a criatura humana da escravidão do mal e da morte. Por conseguinte, em Cristo foi-nos comunicada a vida imortal, a própria vida da Trindade. Graças a Cristo, Bom Pastor que não abandona a ovelha perdida, aos homens de todos os tempos é conferida a possibilidade de entrar em comunhão com Deus, Pai misericordioso, pronto a acolher novamente em casa o filho pródigo. Um sinal surpreendente deste amor é a Cruz. Na morte de Cristo na cruz escrevi na Encíclica Deus caritas est"cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o homem e para o salvar o amor na sua forma mais radical [...] É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e do seu amar" (n. 12).

3. Na vigília da sua Paixão, Jesus deixou como testamento aos discípulos, reunidos no Cenáculo para celebrar a Páscoa, o "novo mandamento do amor mandatum novum": "É isto que vos mando: que vos ameis uns aos outros" (Jo 15, 17). O amor fraterno que o Senhor pede aos seus "amigos" tem a sua fonte no amor paterno de Deus. O Apóstolo João observa: "Quem ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus" (1 Jo 4, 7). Portanto, para amar segundo Deus é necessário viver nele e dele: Deus é a primeira "casa" do homem, e somente quem nele habita arde com o fogo da caridade divina, capaz de "incendiar" o mundo. Não é talvez esta a missão da Igreja de todos os tempos? Então, não é difícil compreender que a autêntica solicitude missionária, compromisso primordial da Comunidade eclesial, está vinculada à fidelidade ao amor divino, e isto vale para cada um dos cristãos, para cada comunidade local, para as Igrejas particulares e para todo o Povo de Deus. Precisamente da consciência desta missão conjunta haure vigor a generosa disponibilidade dos discípulos de Cristo, para realizar obras de promoção humana e espiritual que dão testemunho, como escrevia o amado João Paulo II na Encíclica Redemptoris missio, "da alma de toda a actividade missionária: o amor, que é e permanece o verdadeiro motor da missão, constituindo também "o único critério pelo qual tudo deve ser feito ou deixado de fazer, mudado ou mantido. É o princípio que deve dirigir cada acção, e o fim para o qual deve tender. Agindo na perspectiva da caridade ou inspirado pela caridade, nada é impróprio e tudo é bom"" (n. 60). Deste modo, ser missionário quer dizer amar a Deus com todo o próprio ser a ponto de entregar, se for necessário, a vida por Ele. Quantos sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, também nesta nossa época, deram o supremo testemunho do seu amor com o martírio! Ser missionário significa debruçar-se, como o bom Samaritano, sobre as adversidades de todos, de forma especial dos mais pobres e necessitados, porque quem ama com o Coração de Cristo não busca o seu próprio interesse, mas unicamente a glória do Pai e o bem do próximo. Aqui está o segredo da fecundidade apostólica da acção missionária, que ultrapassa as fronteiras e as culturas, alcança os povos e se espalha até aos extremos confins do mundo.

4. Estimados irmãos e irmãs, que o Dia Missionário Mundial constitua uma ocasião útil para compreender cada vez melhor que o testemunho do amor, alma da missão, diz respeito a todos. Com efeito, servir o Evangelho não deve considerar-se uma aventura solitária, mas um compromisso compartilhado por todas as comunidades. Ao lado daqueles que se encontram na linha de vanguarda nas fronteiras da evangelização e aqui penso com reconhecimento nos missionários e nas missionárias muitos outros, crianças, jovens e adultos, com a sua oração e a sua cooperação, contribuem de várias maneiras para a propagação do Reino de Deus na terra. Formulo bons votos a fim de que esta partilha aumente cada vez mais, graças à contribuição de todos. Aproveito de bom grado esta circunstância para manifestar o meu agradecimento à Congregação para a Evangelização dos Povos e às Pontifícias Obras Missionárias (P.O.M.) que, com dedicação, coordenam os esforços envidados em todas as regiões do mundo, em favor da acção de quantos se encontram na primeira linha nas fronteiras missionárias. A Virgem Maria, que com a sua presença aos pés da Cruz e a sua oração no Cenáculo, colaborou activamente nos primórdios da missão eclesial, sustente a sua acção e ajude os crentes em Cristo a serem cada vez mais capazes do amor verdadeiro, para que num mundo espiritualmente sequioso se tornem nascente de água viva. Formulo de coração estes votos, enquanto concedo a todos a minha Bênção.

Vaticano, 29 de Abril de 2006.
PAPA BENTO XVI


© Copyright 2006 - Libreria Editrice Vaticana

domingo, setembro 17, 2006

EdC - Setembro 2006

MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI AOS PARTICIPANTES NO II CONGRESSO MUNDIAL DOS MOVIMENTOS ECLESIAIS E DAS NOVAS COMUNIDADES

Queridos irmãos e irmãs!

Na expectativa do encontro previsto para sábado, 3 de Junho na Praça de São Pedro com os membros de mais de 100 Movimentos eclesiais e novas Comunidades, sinto-me feliz por vos enviar, representantes de todas estas realidades eclesiais, reunidos em Rocca di Papa no Congresso Mundial, uma calorosa saudação com as palavras do Apóstolo: "Que o Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz na fé, para que transbordeis de esperança, pela força do Espírito Santo" (Rm 15, 13). Ainda está viva, na minha memória e no meu coração, a recordação do precedente Congresso Mundial dos Movimentos eclesiais, realizado em Roma de 26 a 29 de Maio de 1998, ao qual fui convidado a dar a minha contribuição, então na qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, com uma conferência sobre a posição teológica dos Movimentos. Aquele Congresso teve o seu coroamento no memorável encontro com o amado Papa João Paulo II a 30 de Maio de 1998 na Praça de São Pedro, durante o qual o meu Predecessor confirmou o seu apreço pelos Movimentos eclesiais e as novas Comunidades, que definiu "sinais de esperança" para o bem da Igreja e dos homens.

Hoje, consciente dos passos feitos a partir de então pelo caminho traçado pela solicitude pastoral, pelo afeto e pelos ensinamentos de João Paulo II, gostaria de me congratular com o Pontifício Conselho para os Leigos, nas pessoas do seu Presidente, D. Stanislaw Rylko, do Secretário, D. Joseph Clemens e dos seus colaboradores, pela importante e válida iniciativa deste Congresso Mundial, cujo tema "A beleza de ser cristão e a alegria de o comunicar" se inspira numa afirmação minha da homilia de início do ministério petrino. É um tema que convida a refletir sobre o que caracteriza essencialmente o acontecimento cristão: de fato, nele vem ao nosso encontro Aquele que em carne e sangue, visível e historicamente trouxe o esplendor da glória de Deus à terra. A Ele aplicam-se as palavras do Salmo 44: "Tu és o mais belo dos filhos dos homens!". E a Ele, paradoxalmente, fazem referência também as palavras do profeta: "...sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente" (Is 53, 2). Em Cristo encontram-se a beleza da verdade e a beleza do amor; mas o amor, sabemo-lo, requer também a disponibilidade para sofrer, uma disponibilidade que pode chegar até à doação da vida por quem se ama (cf. Jo 15, 13)! Cristo, que é "a beleza de qualquer beleza", como costumava dizer São Boaventura (Sermones dominicales 1, 7), torna-se presente no coração do homem e atrai-o à sua vocação que é amor. É graças a esta extraordinária força de atração que a razão é subtraída ao seu entorpecimento e se abre ao Mistério. Revela-se assim a beleza suprema do homem que, criado à imagem de Deus, é regenerado pela graça e destinado à glória eterna.

Ao longo dos séculos, o cristianismo foi comunicado e difundiu-se graças à novidade de vida de pessoas e de comunidades capazes de dar um testemunho incisivo de amor, de unidade e de alegria. Precisamente esta força pôs tantas pessoas em "movimento" no suceder-se das gerações. Não foi porventura a beleza que a fé gerou no rosto dos santos a estimular muitos homens e mulheres a seguir as suas pegadas? No fundo, isto é válido também para vós: através dos fundadores e dos iniciadores dos vossos Movimentos e Comunidades individuastes com singular luminosidade o rosto de Cristo e pusestes-vos a caminho. Também hoje Cristo continua a fazer ressoar no coração de muitos aqueles "vem e segue-me" que pode decidir o seu destino. Isto acontece normalmente através do testemunho de quem fez uma experiência pessoal da presença de Cristo. No rosto e na palavra destas "criaturas novas" torna-se visível a sua luz e ouve-se o seu convite.

Portanto digo-vos, queridos amigos dos Movimentos: fazei com que eles sejam sempre escolas de comunhão, companheiros a caminho nos quais se aprende a viver na verdade e no amor que Cristo nos revelou e comunicou por meio do testemunho dos Apóstolos, no seio da grande família dos seus discípulos. Ressoe sempre no vosso coração a exortação de Jesus: "Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está no céu" (Mt 5, 16). Levai a luz de Cristo a todos os ambientes sociais e culturais em que viveis. O impulso missionário é comprovação da radicalidade de uma experiência de fidelidade sempre renovada ao próprio carisma, que leva além de qualquer fechamento cansado e egoísta em si. Iluminai a obscuridade de um mundo transtornado pelas mensagens contraditórias das ideologias!

Não há beleza que tenha valor se não há uma verdade a ser reconhecida e seguida, se o amor se limita a sentimento passageiro, se a felicidade se torna miragem inalcançável, se a liberdade degenera em instintividade. Quanto mal é capaz de produzir na vida do homem e das nações a vontade do poder, da posse, do prazer! Levai a este mundo perturbado o testemunho da liberdade com que Cristo nos libertou (cf. Gl 5, 1). A extraordinária fusão entre o amor de Deus e o amor do próximo torna a vida bela e faz florescer o deserto no qual com frequência vivemos. Onde a caridade se manifesta como paixão pela vida e pelo destino do próximo, irradiando-se nos afetos e no trabalho e tornando-se força de construção de uma ordem social mais justa, ali constrói-se a civilização capaz de enfrentar o avanço da barbaridade. Tornai-vos construtores de um mundo melhor segundo a ordo amoris na qual se manifeste a beleza da vida humana.

Os Movimentos eclesiais e as novas Comunidades são hoje sinal luminoso da beleza de Cristo e da Igreja, sua Esposa. Vós pertenceis à estrutura viva da Igreja, Ela agradece-vos pelo vosso compromisso missionário, pela ação formativa que desempenhais de modo crescente sobre as famílias cristãs, para a promoção das vocações ao sacerdócio ministerial e à vida consagrada que desenvolveis no vosso âmbito. Agradece-vos também pela disponibilidade que demonstrais ao receber as indicações operativas não só do Sucessor de Pedro, mas também dos Bispos das diversas Igrejas locais, que são, juntamente com o Papa, guardas da verdade e da caridade na unidade. Confio na vossa obediência imediata.

Além da afirmação do direito à própria existência, deve prevalecer sempre, com indiscutível prioridade, a edificação do Corpo de Cristo no meio dos homens. Qualquer problema deve ser enfrentado pelos Movimentos com sentimentos de profunda comunhão, em espírito de adesão aos Pastores legítimos. Ampare-vos a participação na oração da Igreja, cuja liturgia é a mais alta expressão da beleza da glória de Deus, e constitui de certa forma um aproximar-se do Céu à terra.

Confio-vos à intercessão daquela que invocamos como a Tota pulchra, a "Toda bela", um ideal de beleza que os artistas sempre procuraram reproduzir nas suas obras, a "Mulher vestida de sol" (Ap 12, 1) na qual a beleza humana se encontra com a beleza de Deus. Com estes sentimentos envio-vos a todos, como penhor de afeto constante, uma especial Bênção Apostólica.
Vaticano, 22 de Maio de 2006.

PAPA BENTO XVI © Copyright 2006 - Libreria Editrice Vaticana