sexta-feira, dezembro 29, 2006

UMA VOLTA AO PORQUE

SEGUNDO ENCONTRO


Esse capítulo é o capítulo-chave do livro todo. Pois nele, Giussani tenta fazer nos “tocar do dedo” o senso religioso em nossa vida, isto é, tenta levar cada um de nós a dizer: “é verdade, eu também vivo isso”. No primeiro ponto, ele nos mostra que esse tal de “senso religioso” não é senão esse não sei o que que provoca em nós aquelas perguntas, das quais nos falava o padre Guilherme, na introdução que acabamos de ler. Giussani as exemplifica com esse poema de Leopardi: quem de nós nunca “filosofou”, diante da imensidão de um céu estrelado, ou diante da infinitude do mar, da enorme potência de uma trovoada, ou num evento importante da vida, tal como o nascimento de uma criança, ou a morte de um ente querido? Giussani nos diz que essas perguntas são características do homem: nenhum animal as tem.
No ponto 2, o autor afirma que esse senso religioso é o fundo mais profundo do nosso ser, que ele está por trás de todo o que desejamos, fazemos ou dizemos, que ele é a raiz de todo nosso agir. Então, se todo o que fazemos vem dele, de um certo jeito, ele vem primeiro.
No seu terceiro ponto, exigência de uma resposta total, Giussani diz duas coisas importantes. A primeira (que vem no final do ponto), é que esse senso religioso, se ele aparece através das perguntas últimas, então ele se confunde com a exigência nossa de sentido, com nossa vontade insaciável de saber o porquê de todo: porque isso? O que significa? O que está por trás? A segunda coisa, é que só poderíamos ficar tranqüilos com essas perguntas se achávamos a resposta certa para todas, se não tivesse mais a mínima pergunta esquecida, em outras palavras, se podíamos achar a resposta total.
E no último ponto estudado hoje, o autor observa justamente que nunca estamos plenamente satisfeitos com as respostas encontradas. Quando pensamos achar uma, logo aparece outra pergunta atrás...
Esse assunto será continuado ainda por dois encontros.



O SENSO RELIGIOSO: SUA NATUREZA[1]


1. O nível de certas perguntas


O fator religioso representa a natureza de nosso eu enquanto se exprime em certas perguntas: “Qual é o significado último da existência?” “Por que existe a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena viver?”. Ou, a partir de outro ponto de vista: “De que e para que é feita a realidade?”. O senso religioso situa-se dentro da realidade do nosso eu ao nível destas perguntas: coincide com o compromisso radical de nosso eu com a vida, que se mostra nestas perguntas.
Um dos textos literários mais belos é aquele em que “o pastor errante na Ásia” de Leopardi repropõe à Lua, que parece dominar o infinito do céu e da terra, as perguntas do horizonte também sem fim:

E sempre te vejo
Estar tão muda assim sobre o deserto,
Que em limite incerto o céu confina,
Ou sobre o meu rebanho,
Indo, indo, a seguir-me bem de perto,
E olhando o céu de estrelas sobre as rochas,
Digo-me a mim, pensando:
Para que tantas tochas?
Que fazem o ar infinito e essa profunda,
Azul serenidade?
Que quer dizer a solidão imensa?
E eu, que sou?

Desde os tempos mais antigos, uma das comparações mais usadas para identificar a fragilidade e o caráter enigmático último da vida humana são as folhas, folhas secas caídas no outono. Podemos dizer que o senso religioso é a característica que qualifica o nível humano da natureza e se identifica com a intuição inteligente e a emoção dramática com que o homem, olhando a própria vida e a de seus semelhantes, diz: “Somos como folhas...”. “Longe do seu ramo, pobre folha frágil, onde irás?”. Mas, seja como for, a retomada leopardiana do poema de Arnault tem antepassados bem conhecidos não só na literatura grega, mas também em todas as literaturas do mundo.
O senso religioso está no nível destas emoções, como eu dizia, inteligentes e dramáticas, inevitáveis – mesmo se o clamor ou a obtusidade[2] da vida social pareçam querer silenciá-las.
E tudo se concerta para nos calar, em parte
Por vergonha, talvez, em parte por indizível esperança.
(R. M. Rilke)


2. No fundo do nosso ser


Estas perguntas se enraízam profundamente no nosso ser: são inextirpáveis
[3], pois constituem como que o tecido de que é feito.
São Paulo, no discurso do Areópago, relatado no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, quando disputa com os antenienses a respeito da procura de uma resposta às perguntas últimas, que fazem falar o fundo do nosso ser, identifica-as com a energia que domina toda a mobilidade humana, provocando-a, sustentando-a, redefinindo-a continuamente. Esta mobilidade compreende inclusive a própria mobilidade dos povos e seu vagar pelo mundo “em busca do deus”, dele “que dá a cada um a vida, a respiração, tudo”.
Qualquer movimento do homem tem esta fonte, esta raiz enérgica, e é secundário e dependente em relação a esta última, original, radical e enigmática fonte.


3. A exigência de uma resposta total


Naquelas perguntas, o aspecto decisivo é oferecido pelos adjetivos e advérbios: qual é o sentido último da vida no fundo; no fundo, de que é feita a realidade; para que vale verdadeiramente a pena que eu exista, que a realidade exista?
São perguntas que esgotam toda a energia de procura da razão. São perguntas que exigem uma resposta total, que abranja todo o horizonte da razão, esgotando toda a “categoria da possibilidade”.
Existe, com efeito, uma coerência da razão, que só se detém quando chega a se exaurir totalmente.
... Sob o intenso azul do céu
um ou outro pássaro de mar voa
nunca se detém
porque todas a imagens
têm a escrita “mais além”
(E. Montale)

Se o sentido da realidade se exaurisse[4] somente após responder a mil perguntas e o homem encontrasse a resposta para novecentas e noventa e nove, estaria tão inquieto e insatisfeito como no começo. Existe no Evangelho uma referência importante a esta dimensão: “Que importa ao homem possuir todo o mundo, se perde o significado de si? Que dará o homem em troca de si?”
Este “si” não é outra coisa senão a exigência clamorosa, indestrutível e substancial de afirmar o significado de tudo. É precisamente assim que o senso religioso define o eu: o lugar da natureza onde é afirmado o significado do todo.
A urgência de afirmar este significado pode ser comparada com a experiência do sentimento humano do amor, descrita por Leopardi em seu poema “Pensamento Dominante”:

Dulcíssimo, potente
Dominador do todo em minha mente:
Terrível, mas amado
Dom do céu; companheiro
Dos dias meus sem fim,
Pensamento que voltas sempre a mim.
Do ser só mistério
Quem não fala? Sua força em nossos peitos
Quem não sentiu? (...)

Quão solitária a minha
Mente se viu tornada
Quando tu a tomaste por morada!
Fugiram qual relâmpago desperto
Que o céu não mais protela,
Meus outros pensamentos. E qual torre
No imenso de um deserto,
Estás gigante e só no centro dela.


4. Desproporção à resposta total


Quanto mais avançamos na tentativa de responder a tais perguntas, mais percebemos a sua potência e a nossa desproporção em relação à resposta total. É o tema dramático dos “Pensamentos” de Leopardi :

“Não poder estar satisfeito com nenhuma coisa terrena, nem, por assim dizer, com a terra inteira; considerar a amplitude inestimável do espaço, o número e a construção maravilhosa dos mundos, a achar que tudo é pouco e pequeno para a capacidade de sua própria alma; imaginar infinito o número dos mundos, e o universo infinito, e sentir que a alma e o nosso desejo seriam ainda maiores do que tão grande universo; e sempre acusar as coisas de insuficiência e maldade, e sentir carência e vazio e, portanto, tédio, parece-me o maior sinal de grandeza e nobreza que se vê na natureza humana.”

A inexorabilidade
[5] das perguntas ressalta a contradição entre o ímpeto da exigência e a limitação da medida humana na procura. No entanto, lemos com gosto um texto à medida que a vibração destas perguntas e a dramaticidade lhe sustentam a temática.
Se a força e a agudeza da sensibilidade de Leopardi nos comovem, é porque manifestam algo que somos: uma contradição insolúvel; o "mistério eterno do nosso ser", do poema "Sobre o retrato de uma bela mulher esculpido sobre seu monumento sepulcral":

Desejos infinitos
Visões e alumbramento
Cria no pensamento,
Por força inata, a sábia harmonia;
Donde por mar que é só delícia, arcano
Erra o espírito humano,
Quase como, a brincar,
Um nadador audaz pelo oceano:
Mas mínima anarquia Que fira o ouvido, logo
Torna‑se nada o Éden que existia.

Como podes, ó natureza humana,
Se em tudo és frágil,
vil, se és pó e sombra,
Tão elevados ter os sentimentos?
E como, se ainda em parte nobre és,
Podem tão facilmente os teus mais dignos
Pensamentos e os mais altos impulsos,
Ser por tão baixas causas despertados
E ao mesmo tempo extintos?

[1] GIUSSANI, Luigi, O senso religioso, Capítulo V, 2a edição – Edit. Companhia Ilimitada
[2] caráter ou comportamento daquele que é insensível, estúpido.
[3] que não se pode extirpar, arrancar.
[4] Exaurir: despejar(-se) até a última gota, esgotar(-se) inteiramente.
[5] Qualidade de que não cede ou se abala diante de súplicas e rogos.

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