TERCEIRO ENCONTRO
1. Desproporção estrutural
A inexauribilidade[1] da resposta às exigências constitutivas do nosso eu é estrutural, isto é, de tal modo inerente à nossa natureza que representa a característica do seu ser.
Se chamamos provisoriamente "deus" o termo indefinível deste apelo, inscrito em nós mesmos, Rilke[2] proclama seu caráter definitivo em uma admirável poesia sua:
Apaguem‑se‑me os olhos: eu Te vejo,
Torna‑me surdo e ouvirei Tua voz,
Corta‑me os pés: por Teu caminho corro.
Sem voz a ti elevarei as preces.
Quebrem‑se‑me os braços e eu Te abraçarei,
Com novos braços de meu coração;
Se o coração parar, será o meu cérebro;
Se também ele arder, então meu sangue
Te acolherá, Senhor, em cada gota.
Dentro de um milhão de anos, a questão colocada por aquelas perguntas será talvez mais exasperada, mas não respondida.
Talvez se para voar tivesse eu asas,
E fosse às nuvens, estrelas contar,
Ou qual trovão, de cume em cume errasse,
Seria mais feliz, doce rebanho,
Seria mais feliz, cândida lua.
(G. Leopardi)
Cento e cinqüenta anos depois de Leopardi, o homem vaga "qual trovão, de cume em cume" com seus aviões a jato, e "conta as estrelas uma a uma" com seus satélites. Mas podemos dizer que o homem tenha‑se tornado, no entanto, ao menos um pouco mais feliz? Certamente não. Trata‑se de algo que está, por natureza, "além" de todo o movimento humano.
Na introdução de seu livro Da ciência à fé, o grande matemático Severi, muito amigo de Einstein, escreveu que quanto mais se aprofundava na pesquisa científica, mais era evidente para ele que tudo que descobria, à medida que avançava, era função de um absoluto "que se opunha como barreira elástica à sua superação com os meios cognitivos"[3]. Quanto mais sua pesquisa avançava, mais o horizonte ao qual chegava remetia a um outro horizonte, fazendo perceber sua conquista como única função que o impelia posteriormente para um "x", um "quid" que estava além das condições nas quais operava. Quando a pesquisa atingia um certo termo, o objeto da ação, x, se deslocava. (...)
Para alguém que esteja seriamente empenhado e atento a esta dinâmica, a incomensurabilidade[4] e a desproporção entre o objeto ao qual a indagação[5] chega e a profundidade das perguntas se torna mais evidente à medida que avança. Foi uma experiência semelhante que converteu Francesco Severi à religião, depois – ele mesmo diz –de cinqüenta anos de alta experiência científica. Em uma conversa que teve com Einstein poucos dias antes da morte deste, Severi discutiu também com o grande físico o tema religioso. A um certo ponto, Einstein lhe disse: " ... quem não admite o mistério insondável não pode nem ser um cientista". O que caracteriza o cientista é, de fato, o empenho profundo e aberto à pesquisa diante de qualquer fenômeno ou circunstância. Se não admite o x incomensarurável, se não admite a desproporção, que ninguém pode preencher, entre o horizonte último e a capacidade dos passos humanos, o homem elimina a categoria da possibilidade, a dimensão suprema da razão, pois somente um objeto incomensurável pode representar um convite indefinido para uma abertura estrutural no homem. A vida é fome, sede, paixão por um objeto último que domina sobre seu horizonte, embora esteja sempre para além dele. E é isto que, uma vez reconhecido, faz do homem alguém que busca incansavelmente.
Shakespeare escreveu em HamIet: "há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha tua vã filosofia". Sempre existirão mais coisas no céu e na terra ‑ isto é, na realidade ‑, que na nossa percepção e concepção da realidade ‑ isto é, na filosofia. Por isso, a filosofia deve possuir uma profunda humildade, deve ser uma tentativa inteiramente aberta e desejosa de adequação, complementação, correção: deve ser dominada pela categoria da possibilidade. Onde falta a categoria da possibilidade o passo é bloqueado. O passo já é pré‑definido pelo projeto do poder ou pelo projeto do próprio interesse. Uma sociedade ideológica tende, de fato, a congelar toda procura verdadeira: usa o poder que detém como instrumento para conter tal pesquisa dentro de certos limites de realização e de manifestação. Uma ditadura nunca tem interesse em que a pesquisa sobre o homem seja livre, porque uma pesquisa livre sobre o homem é o limite mais perigoso para o poder, e fonte incontrolável de possibilidades de oposição.
Quando ao ser humano vem a faltar a humilde consciência de que seu pensamento possa ser essencialmente reformulável, então começa a metamorfose: a filosofia torna‑se ideologia. E a metamorfose vai‑se cumprindo na medida em que pode ser considerado "normal" que se tenda a impor a própria concepção da vida. Assim, entra em cena a violência do poder.
2. Tristeza
À presunção do poder, cheia de censuras e de renegações, corresponde, no indivíduo, no homem real, a grande tristeza, caráter fundamental da vida consciente de si, "desejo de um bem ausente", segundo Santo Tomás.
A incomensurabilidade do objeto verdadeiramente procurado com a capacidade humana de "agarrá‑lo" leva a viver acima de tudo a experiência de uma posse, por natureza, fugitiva.
Seja o que for que digas ou faças,
há dentro um grito:
não é por isso, não é por isso!
E assim tudo reenvia
a uma pergunta secreta:
o ato é pretexto (...)
Na iminência de Deus
a vida acaba
com as reservas caducas,
enquanto cada um se agarra
a algum bem que lhe grita: adeus!
(C. Rebora)
A tristeza brota, assim, da "força operosa que nos fadiga a cada movimento", e a "fadiga" de Foscolo se torna "fastio"[6], a inquietação leopardiana despertada por:
...um espinho angustiante
Que me faz mais que nunca estar distante
de encontrar paz e lugar.
Estar consciente do valor de tal tristeza identifica‑se com a consciência da estatura da vida e com o sentimento de seu destino. Assim, em Os demônios, Dostoievsky pode contar nobremente:
“... Soubera tocar no coração do seu amigo as cordas mais profundas e provocar nele a primeira sensação, ainda indefinida, daquela tristeza eterna e santa que alguma alma eleita, tendo‑a uma vez saboreado e conhecido, depois não trocará nunca mais por uma satisfação barata (há certos amadores feitos de tal forma que têm esta tristeza mais querida do que a satisfação mais radical, admitindo que tal satisfação seja possível)".
Se a tristeza é a centelha que se acende pela experiência da "diferença de potencial" entre a destinação ideal e a não realização histórica, o achatamento daquela "diferença" ‑ seja como for que aconteça ‑ cria o oposto lógico da tristeza, o desespero:
"Somente a idéia constante de que existe algo de infinitamente mais justo e mais feliz do que eu me enche de ternura sem medida e de glória, quem quer que eu seja, o que quer que eu tenha feito. Para o homem, é muito mais indispensável do que a própria felicidade saber, e a todo momento crer que existe, em certo lugar, uma felicidade perfeita e calma, para todos e para tudo... Toda a lei da existência humana consiste só nisto: que o homem possa se dobrar diante do infinitamente grande. Se os homens viessem a ser privados do infinitamente grande, eles não poderiam mais viver e morreriam presos do desespero".
(F. Dostoievsky)
Talvez o comentário de uma jovem numa carta a um amigo não seja de menor peso que a intuição do grande russo: "Se as coisas fossem somente aquilo que vemos, estaríamos desesperados".
Mas nenhuma página da literatura, talvez, expresse tanto a estrutura filosófica e o dinamismo existencial cotidiano dessa tristeza como a última parte de "A noite do dia de festa", de Leopardi:
... Ai, pela rua, não longe, ouço o canto
Do artesão solitário, que regressa
Noite alta ao casebre após folgar.
E ao pensar que sem quase deixar traço,
No mundo tudo passa, cruelmente,
Sinto que o coração se me constrange.
Passou o dia feriado e o comum vem,
E lá se vai o tempo assim também,
Todo o humano evento.
Onde está o som dos povos que passaram,
Onde a fama do célebre ancestral,
De Roma o império, armas e fragor,
Que pela terra e pelo mar andaram?
Tudo é silêncio e paz, repousa o mundo.
E deles não há mais sequer lembrança.
Na minha infância, quando ansiosamente,
Se esperava o feriado, e ao terminar,
Quando eu com insônia e magoado,
Jazia no leito, já o coração
Me confrangia um canto que além
Nos caminhos se ouvia a falecer
Aos poucos na distância.
[1] Caráter do que não se pode exaurir: nunca atingimos a plena resposta, o fim da resposta.
[2] Poeta alemão.
[3] Tudo o que ele descobria nunca era uma resposta total, mas sempre dependia de outra coisa, era como uma parte da resposta total, absoluta, que ele não podia dominar com a inteligência: cada vez que dela se aproximava, ela parecia fugir para mais longe.
[4] Caráter do que não se pode medir.
[5] Pesquisa.
[6] sentimento de enfado, aborrecimento, tédio.
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