sexta-feira, agosto 31, 2007

UMA VOLTA AO PORQUE

1.2 Esvaziamento ou redução da pergunta



QUINTO ENCONTRO


ATITUDES NÃO‑RAZOÁVEIS DIANTE DA
INTERROGAÇÃO ÚLTIMA: ESVAZIAMENTO DA PERGUNTA
[1]


(...) Passo a enumerar seis atitudes, não por puro amor à enumeração, mas porque, de um modo ou de outro, para todos nós estas atitudes são tentações, quando não práticas já vividas. "Nihil humani a me alienum puto" (Nada do que é humano considero estranho a mim): não acredito que não possa acontecer também comigo uma coisa que tenha acontecido a outro homem; seja como for, es­tas atitudes definem estatisticamente a postura, pelo menos prática, da maioria.


1. Negação teórica das perguntas

Antes de tudo, chamo negação teórica das perguntas o fato de que aquelas perguntas, aquelas interrogações, são definidas como "sem sentido". As frases que expri­mem tais perguntas teriam uma consistência apenas formal.

(...) "As perguntas nas quais se condensa a confusa e indiscriminada veleidade reflexiva dos adolescentes, a sua primitiva e sumária filosofia (o que é a vida, para que ser­ve, qual é o fim do universo, por que existe a dor), aque­las perguntas que o filósofo verdadeiro e adulto afasta de si como absurdas e carentes de um autêntico valor especulativo, e tais que não comportam resposta alguma nem possibilidade de desenvolvimento, estas mesmas perguntas se tornaram a obsessão de Leopardi, o conteúdo exclusivo de sua filosofia".
Ah, entendi! ‑ disse aos meus alunos ‑ Homero, Sófocles, Virgílio, Dante, Dostoievsky e Beethoven seriam adolescentes, porque toda a sua expressão é determinada por aquelas perguntas, grita aquelas exigências que, co­mo dizia Thomas Mann, "dão fogo e tensão a cada uma de nossas palavras, dão urgência a cada um de nossos problemas". Eu me sinto feliz por estar na companhia daqueles homens, porque um homem que cancela essa questão não é um homem "humano"!

(...) Analogamente, um dos maiores responsáveis por aque­la pedagogia que formou tantas gerações nos Estados Unidos e que nos chega como uma onda de refluxo trinta anos depois, John Dewey, afirma:
"Abandonar a busca da realidade e do valor absolu­to e imutável pode parecer um sacrifício, mas esta renuncia é a condição para empenhar‑se em uma vocação mais vital. A procura de valores que possam ser assegurados e compartilhados por todos, porque ligados à vida social, é uma procura na qual a filosofia encontrará, não rivais, mas auxiliares nos homens de boa vontade".
Mas abandonar a procura da realidade, do valor absoluto e imutável, é um sacrifício tão grande que por ele as pessoas podem destruir‑se. Será preciso, de fato, abando­nar algo a que a natureza nos impulsiona: e isto é irracio­nal, é desumano. É uma posição inadequada aos termos do problema. (...)


2. Substituição voluntarista das perguntas

Se se tolhe a energia estimulante da "experiência ele­mentar", aquele "aguilhão que quase nos fere", se se to­lhe a energia dinâmica que aquelas perguntas determinam, o movimento que imprimem à nossa humanidade; se forem esvaziadas de seu conteúdo as perguntas que consistem precisamente a expressão do mecanismo essencial, o mo­tor da nossa personalidade, neste caso, em que poderá con­sistir a energia que nos faz agir?
A energia que nos faz agir reduz‑se a uma afirmação de si. O instrumento da afirmação de nós mesmos é a von­tade: por isso, pode‑se tratar somente de uma energia, de uma afirmação voluntarista.
Esta afirmação pode partir de: 1) um gosto pela prá­xis pessoal; 2) um sentimento utópico; 3) um projeto social.
Não creio que seja apenas exemplificativa esta trípli­ce diferenciação. Dou alguns exemplos.

1) (...) Para além da grave intuição da solidão, o seu proje­to de vida é uma práxis voluntarista.
2) Ou então esta energia voluntarista, como que cega, dá‑se a si mesma uma finalidade: não é atraída por uma meta reconhecida como objetiva, mas ela própria a esco­lhe. Bertrand Russell, profeta da cultura radical, escreve ainda no início do século:
"Eis que experimentei repentinamente algo como aqui­lo que as pessoas religiosas chamam 'conversão'. (...) Tor­nei‑me repentina e vivamente consciente da solidão na qual a maioria vive, e apaixonadamente desejei encontrar os meios para diminuir este trágico isolamento. (...) A vi­da do homem é uma longa marcha através da noite, rode­ada de inimigos invisíveis, torturada pela deterioração e pela dor. (...) Um a um, enquanto caminham, os nossos companheiros de viagem desaparecem da nossa vista. (...) Muito breve é o tempo de que dispomos para ajudá‑los. Que o nosso tempo possa derramar luz solar sobre sua es­trada, para reanimar a coragem que diminui, para incutir fé nas horas de desespero".
Qual fé? Fé em quê? É como alguém que enrijecesse os músculos como quando, crianças, queríamos ostentá­-los, para poder enfrentar o tempo com um sentimento ideal, produto desse mesmo esforço. É como alguém que endurecesse em vão os músculos da vontade, ou como uma vela inflada pelo vento sem direção. (...)

3) Assim, chegamos ao projeto social. "Enrijeçam os músculos, encham o peito para realizar o projeto de uma nova sociedade". Um projeto feito por quem? "Por mim" ‑ diria Marx. "Por nós" ‑ diriam outros. É uma ênfa­se voluntarista que esquece o conteúdo mais agudo e objetivo ‑ o conteúdo pessoal ‑ do qual deriva também o interesse social. É uma redução que abstrai, um esquecimento impotente. Não é por acaso que a produção filosó­fica na União Soviética é quase exclusivamente dedicada à ética: um moralismo que tudo invade.


3. Negação prática das perguntas

Se a primeira atitude afirma que as perguntas não têm nenhum significado inteligível, agora se trata de uma posi­ção puramente existencial, uma concepção vivida. As per­guntas machucam, fazem mal. É preciso, então, conside­rar a vida de modo tal que não venham à luz.
O primeiro significado é bem geral, conhecido por to­dos, mesmo por nós: "não pense nisso!". Como na peça Henrique IV, de Shakespeare, quando Dora diz a Falstaff: "ó meu gracioso leitãozinho da feira de São Bartolomeu, quando cessarás de guerrear de dia e duelar de noite, e co­meçarás a preparar o teu velho corpo para o céu?". Fals­taff responde: "Quieta, minha boa Dora, não fales como uma cabeça de morto, não me recordes o meu fim". Es­ta é a suprema sabedoria de muitos.
Mas descobrimos uma outra conotação, por exemplo, numa pagina de Brandys: a sociedade cria interesses para obscurecer o grande interesse da pergunta essencial, a per­gunta pelo significado. Mas não pode consegui‑lo. Então, a vida em sociedade é suplantada pelo álcool (ou, hoje, pela droga).
(...) No início da "beat generation", um dos slogans mais conhecidos era: "Devemos ir. Mas para onde vamos? Não sei, mas é preciso ir". Fazer para não sentir, para não aprofundar uma inquietude que, apesar de tudo, é manifesta.
Nesta atitude está uma conotação cética que sustenta a irresponsabilidade da maioria (porque o ceticismo sempre coincide com a fuga de um compromisso com a realidade nos seus fatores integrais). Em um livro apócrifo da Bíblia, o IV de Esdras, está escrito: "Que vantagem há em que seja prometida a esperança imperecível, se estamos aqui prostrados na infelicidade?" Por isso, é melhor deixar as perguntas últimas ‑ dever‑se‑ia concluir ‑ e nos esforçar para viver bem aqui!
Mas o aspecto mais nobre, mais acabado, mais fundamentado filosoficamente, a única alternativa digna ao empenho de uma vida sinceramente religiosa, isto é, verdadeiramente comprometida com aquelas perguntas, é o ideal estóico da ataraxia, da imperturbabilidade.
John Falstaff entregava‑se aos duelos, outros se entregam ao álcool ou às drogas, outros ainda à droga do ceticismo; mas há uma postura muito mais complexa e sutil. Não é possível responder àquelas perguntas; portanto, é preciso anestesiar‑se diante delas. Eis então um homem digno e sábio, que se exercita no domínio de si e constrói para si um equilíbrio totalmente racional, por ele imaginado e realizado, e este equilíbrio o torna firme, destemido diante de todos os acontecimentos.
Este é o ideal supremo ao qual chega a concepção não religiosa do homem, seja qual for a filosofia na qual se baseia.
(...) A resposta às perguntas da vida não está neste domínio, neste governo de si. (...)

[1] GIUSSANI, Luigi — “O senso religioso” — Capítulo VI, págs. 99 à 114 primeiro volume do Percurso (2a edição – Ed. Companhia Ilimitada)

quarta-feira, agosto 08, 2007

PAPA NO BRASIL


Encontro com os jovens no Pacaembu 10.05.2007

Texto original

Queridos jovens! Queridos amigos e amigas!

«Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres [...] Depois, vem e segue-me» (Mt 19,21).

1. Desejei ardentemente encontrar-me convosco nesta minha primeira viagem à América Latina. Vim para abrir a
V Conferência do Episcopado Latino-americano que, por meu desejo, vai realizar-se em Aparecida, aqui no Brasil, no Santuário de Nossa Senhora. Ela nos coloca aos pés de Jesus para aprendermos suas lições sobre o Reino e impulsionar-nos a ser seus missionários, para que os povos deste “Continente da Esperança” tenham, n’Ele, vida plena.
Os vossos Bispos do Brasil, na sua Assembléia Geral do ano passado, refletiram sobre o tema da evangelização da juventude e colocaram em vossas mãos um documento. Pediram que fosse acolhido e aperfeiçoado por vós durante todo o ano. Nesta última Assembléia retomaram o assunto, enriquecido com vossa colaboração, e desejam que as reflexões feitas e as orientações propostas sirvam como incentivo e farol para vossa caminhada. As palavras do Arcebispo de São Paulo e do encarregado da Pastoral da Juventude, as quais agradeço, bem atestam o espírito que move a todos vocês.
Ontem pela tarde, ao sobrevoar o território brasileiro, pensava já neste nosso encontro no Estádio do Pacaembu, com o desejo de dar um grande abraço bem brasileiro a todos vós, e manifestar os sentimentos que levo no íntimo do coração e que, bem a propósito, o Evangelho de hoje nos quis indicar.
Sempre experimentei uma alegria muito especial nestes encontros. Lembro-me particularmente da Vigésima Jornada Mundial da Juventude, que tive a ocasião de presidir há dois anos atrás na Alemanha. Alguns dos que estão aqui também lá estiveram! É uma lembrança comovedora, pelos abundantes frutos da graça enviados pelo Senhor. E não resta a menor dúvida que o primeiro fruto, dentre muitos, que pude constatar foi o da fraternidade exemplar havida entre todos, como demonstração evidente da perene vitalidade da Igreja por todo o mundo.

2. Pois bem, caros amigos, estou certo de que hoje se renovam as mesmas impressões daquele meu encontro na Alemanha. Em 1991, o Servo de Deus o Papa João Paulo II, de venerada memória, dizia, na sua passagem pelo Mato Grosso, que os “jovens são os primeiros protagonistas do terceiro milênio [...] são vocês que vão traçar os rumos desta nova etapa da humanidade” (Discurso 16/10/1991). Hoje, sinto-me movido a fazer-lhes idêntica observação.
O Senhor aprecia, sem dúvida, vossa vivência cristã nas numerosas comunidades paroquiais e nas pequenas comunidades eclesiais, nas Universidades, Colégios e Escolas e, especialmente, nas ruas e nos ambientes de trabalho das cidades e dos campos. Trata-se, porém, de ir adiante. Nunca podemos dizer basta, pois a caridade de Deus é infinita e o Senhor nos pede, ou melhor, nos exige dilatar nossos corações para que neles caiba sempre mais amor, mais bondade, mais
compreensão pelos nossos semelhantes e pelos problemas que envolvem não só a convivência humana, mas também a efetiva preservação e conservação da natureza, da qual todos fazem parte. “Nossos bosques têm mais vida”: não deixeis que se apague esta chama de esperança que o vosso Hino Nacional põe em vossos lábios. A devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de suas populações requerem um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação que a sociedade vem solicitando.

3. Hoje quero convosco refletir sobre o texto de São Mateus (19, 16-22), que acabamos de ouvir. Fala de um jovem.
Ele veio correndo ao encontro de Jesus. Merece destaque a sua ânsia. Neste jovem vejo a todos vós, jovens do Brasil e da América Latina. Viestes correndo de diversas regiões deste Continente para nosso encontro. Quereis ouvir, pela voz do Papa, as palavras do próprio Jesus.
Tendes uma pergunta crucial, referida no Evangelho, a Lhe fazer. É a mesma do jovem que veio correndo ao encontro com Jesus: o que fazer para alcançar a vida eterna? Gostaria de aprofundar convosco esta pergunta. Trata-se da vida. A vida que, em vós, é exuberante e bela. O que fazer dela? Como vivê-la plenamente?
Logo entendemos, na formulação da própria pergunta, que não basta o aqui e agora, ou seja, nós não conseguimos delimitar nossa vida ao espaço e ao tempo, por mais que pretendamos estender seus horizontes. A vida os transcende. Em outras palavras, queremos viver e não morrer. Sentimos que algo nos revela que a vida é eterna e que é necessário empenhar-se para que isto aconteça. Em outras palavras, ela está em nossas mãos e depende, de algum modo, da nossa decisão.
A pergunta do Evangelho não contempla apenas o futuro. Não trata apenas de uma questão sobre o que acontecerá após a morte. Há, ao contrário, um compromisso com o presente, aqui e agora, que deve garantir autenticidade e conseqüentemente o futuro. Numa palavra, a pergunta questiona o sentido da vida. Pode por isso ser formulada assim: que devo fazer para que minha vida tenha sentido? Ou seja: como devo viver para colher plenamente os frutos da vida? Ou
ainda: que devo fazer para que minha vida não transcorra inutilmente?
Jesus é o único capaz de nos dar uma resposta, porque é o único que nos pode garantir vida eterna. Por isso também é o único que consegue mostrar o sentido da vida presente e dar-lhe um conteúdo de plenitude.

4. Antes, porém, de dar sua resposta, Jesus questiona a pergunta do jovem num aspecto muito importante: por que me chamas de bom? Nesta pergunta se encontra a chave da resposta. Aquele jovem percebeu que Jesus é bom e que é mestre. Um mestre que não engana. Nós estamos aqui porque temos esta mesma convicção: Jesus é bom. Podemos não saber dar toda a razão desta percepção, mas é certo que ela nos aproxima dele e nos abre ao seu ensinamento: um mestre bom.
Quem reconhece o bem é sinal que ama. E quem ama, na feliz expressão de São João, conhece Deus (cf.1Jo 4,7). O jovem do Evangelho teve uma percepção de Deus em Jesus Cristo.
Jesus nos garante que só Deus é bom. Estar aberto à bondade significa acolher Deus. Assim Ele nos convida a ver Deus em todas as coisas e em todos os acontecimentos, mesmo lá onde a maioria só vê a ausência de Deus. Vendo a beleza das criaturas e constatando a bondade presente em todas elas, é impossível não crer em Deus e não fazer uma experiência de sua presença salvífica e consoladora. Se nós conseguíssemos ver todo o bem que existe no mundo e, ainda mais, experimentar o bem que provém do próprio Deus, não cessaríamos jamais de nos aproximar dele, de O louvar e Lhe agradecer. Ele continuamente nos enche de alegria e de bens. Sua alegria é nossa força.
Mas nós não conhecemos senão de forma parcial. Para perceber o bem necessitamos de auxílios, que a Igreja nos proporciona em muitas oportunidades, principalmente pela catequese. Jesus mesmo explicita o que é bom para nós, dando-nos sua primeira catequese. «Se queres entrar na vida, observa os mandamentos» (Mt 19,17). Ele parte do conhecimento que o jovem já obteve certamente de sua família e da Sinagoga: de fato, ele conhece os mandamentos. Eles conduzem à vida, o que equivale a dizer que eles nos garantem autenticidade. São as grandes balizas a nos apontarem o caminho certo. Quem observa os mandamentos está no caminho de Deus.
Não basta conhecê-los. O testemunho vale mais que a ciência, ou seja, é a própria ciência aplicada. Não são impostos de fora, nem diminuem nossa liberdade. Pelo contrário: constituem impulsos internos vigorosos, que nos levam a agir nesta direção. Na sua base está a graça e a natureza, que não nos deixam parados. Precisamos caminhar. Somos impelidos a fazer algo para nos realizarmos a nós mesmos. Realizar-se, através da ação, na verdade, é tornar-se real. Nós somos, em grande parte, a partir de nossa juventude, o que nós queremos ser. Somos, por assim dizer, obra de nossas mãos.

5. Nesta altura volto-me, de novo, para vós, jovens, querendo ouvir também de vós a resposta do jovem do Evangelho: tudo isto tenho observado desde a minha juventude. O jovem do Evangelho era bom. Observava os mandamentos. Estava pois no caminho de Deus. Por isso Jesus fitou-o com amor. Ao reconhecer que Jesus era bom, testemunhou que também ele era bom. Tinha uma experiência da bondade e por isso, de Deus. E vós, jovens do Brasil e da américa Latina? Já descobristes o que é bom? Seguis os mandamentos do Senhor? Descobristes que este é o verdadeiro e único caminho para a felicidade?
Os anos que vós estais vivendo são os anos que preparam o vosso futuro. O “amanhã” depende muito de como estais vivendo o “hoje” da juventude. Diante dos olhos, meus queridos jovens, tendes uma vida que desejamos seja longa; mas é uma só, é única: não a deixeis passar em vão, não a desperdiceis. Vivei com entusiasmo, com alegria, mas, sobretudo, com senso de responsabilidade.
Muitas vezes sentimos trepidar nossos corações de pastores, constatando a situação de nosso tempo. Ouvimos falar dos medos da juventude de hoje. Revelam-nos um enorme déficit de esperança: medo de morrer, num momento em que a vida está desabrochando e procura encontrar o próprio caminho da realização; medo de sobrar, por não descobrir o sentido da vida; e medo de ficar desconectado diante da estonteante rapidez dos acontecimentos e das comunicações.
Registramos o alto índice de mortes entre os jovens, a ameaça da violência, a deplorável proliferação das drogas que sacode até a raiz mais profunda a juventude de hoje. Fala-se por isso, seguidamente, de uma juventude perdida.
Mas olhando para vós, jovens aqui presentes, que irradiais alegria e entusiasmo, assumo o olhar de Jesus: um olhar de amor e confiança, na certeza de que vós encontrastes o verdadeiro caminho. Sois jovens da Igreja. Por isso Eu vos envio para a grande missão de evangelizar os jovens e as jovens, que andam por este mundo errantes, como ovelhas sem pastor.

Sede os apóstolos dos jovens. Convidai-os para que venham convosco, façam a mesma experiência de fé, de esperança e de amor; encontrem-se com Jesus, para se sentirem realmente amados, acolhidos, com plena possibilidade de realizar-se. Que também eles e elas descubram os caminhos seguros dos Mandamentos e por eles cheguem até Deus.
Podeis ser protagonistas de uma sociedade nova se procurais pôr em prática uma vivência real inspirada nos valores morais universais, mas também um empenho pessoal de formação humana e espiritual de vital importância. Um homem ou uma mulher despreparados para os desafios reais de uma correta interpretação da vida cristã do seu meio ambiente será presa fácil a todos os assaltos do materialismo e do laicismo, sempre mais atuantes em todos os níveis.
Sede homens e mulheres livres e responsáveis; fazei da família um foco irradiador de paz e de alegria; sede promotores da vida, do início ao seu natural declínio; amparai os anciãos, pois eles merecem respeito e admiração pelo bem que vos fizeram. O Papa também espera que os jovens procurem santificar seu trabalho, fazendo-o com competência técnica e com laboriosidade, para contribuir ao progresso de todos os seus irmãos e para iluminar com a luz do Verbo todas as
atividades humanas (cf. Lumen Gentium, n. 36). Mas, sobretudo, o Papa espera que saibam ser protagonistas de uma sociedade mais justa e mais fraterna, cumprindo as obrigações frente ao Estado: respeitando as suas leis; não se deixando levar pelo ódio e pela violência; sendo exemplo de conduta cristã no ambiente profissional e social, distinguindo-se pela honestidade nas relações sociais e profissionais. Tenham em conta que a ambição desmedida de riqueza e de poder leva à
corrupção pessoal e alheia; não existem motivos para fazer prevalecer as próprias aspirações humanas, sejam elas econômicas ou políticas, com a fraude e o engano.
Definitivamente, existe um imenso panorama de ação no qual as questões de ordem social, econômica e política ganham um particular relevo, sempre que haurirem sua fonte de inspiração no Evangelho e na Doutrina Social da Igreja.
A construção de uma sociedade mais justa e solidária, reconciliada e pacífica; a contenção da violência e as iniciativas que promovam a vida plena, a ordem democrática e o bem comum e, especialmente, aquelas que visem eliminar certas discriminações existentes nas sociedades latino-americanas e não são motivo de exclusão, mas de recíproco enriquecimento.
Tende, sobretudo, um grande respeito pela instituição do Sacramento do Matrimônio. Não poderá haver verdadeira felicidade nos lares se, ao mesmo tempo, não houver fidelidade entre os esposos. O matrimônio é uma instituição de direito natural, que foi elevado por Cristo à dignidade de Sacramento; é um grande dom que Deus fez à humanidade. Respeitai-o, venerai-o. Ao mesmo tempo, Deus vos chama a respeitar-vos também no namoro e no noivado, pois a vida conjugal que, por disposição divina, está destinada aos casados é somente fonte de felicidade e de paz na medida em que souberdes fazer da castidade, dentro e fora do matrimônio, um baluarte das vossas esperanças futuras. Repito aqui para todos vós que «o eros quer nos conduzir para além de nós próprios, para Deus, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias,
purificações e saneamentos» (Carta encl. Deus caritas est, (25/12/2005), n. 5). Em poucas palavras, requer espírito de sacrifício e de renúncia por um bem maior, que é precisamente o amor de Deus sobre todas as coisas. Procurai resistir com fortaleza às insídias do mal existente em muitos ambientes, que vos leva a uma vida dissoluta, paradoxalmente vazia, ao fazer perder o bem precioso da vossa liberdade e da vossa verdadeira felicidade. O amor verdadeiro “procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará existir para o outro” (Ib. n. 7) e, por isso, será sempre mais fiel, indissolúvel e fecundo.
Para isso, contais com a ajuda de Jesus Cristo que, com a sua graça, fará isto possível (cf. Mt 19,26). A vida de fé e de oração vos conduzirá pelos caminhos da intimidade com Deus, e de compreensão da grandeza dos planos que Ele tem para cada um. “Por amor do reino dos céus” (ib., 12), alguns são chamados a uma entrega total e definitiva, para consagrarse a Deus na vida religiosa, “exímio dom da graça”, como foi definido pelo Concílio Vaticano II (Decr. Perfectae caritatis, n.12). Os consagrados que se entregam totalmente a Deus, sob a moção do Espírito Santo, participam na missão de Igreja, testemunhando a esperança no Reino celeste entre todos os homens. Por isso, abençôo e invoco a proteção divina a todos os religiosos que dentro da seara do Senhor se dedicam a Cristo e aos irmãos. As pessoas consagradas merecem,
verdadeiramente, a gratidão da comunidade eclesial: monges e monjas, contemplativos e contemplativas, religiosos e religiosas dedicados às obras de apostolado, membros de institutos seculares e das sociedades de vida apostólica, eremitas e virgens consagradas. “A sua existência dá testemunho do amor a Cristo quando eles se encaminham pelo seu seguimento, tal como este se propõe no Evangelho e, com íntima alegria, assumem o mesmo estilo de vida que Ele escolheu para Si” (Congr. para os Inst. de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica: Instr. Partir de Cristo, n. 5). Faço votos de que, neste momento de graça e de profunda comunhão em Cristo, o Espírito Santo desperte no coração de tantos jovens um amor apaixonado no seguimento e imitação de Jesus Cristo casto, pobre e obediente, voltado completamente à glória do Pai e ao amor dos irmãos e irmãs.

6. O Evangelho nos assegura que aquele jovem, que veio correndo ao encontro de Jesus, era muito rico. Entendemos esta riqueza não apenas no plano material. A própria juventude é uma riqueza singular. É preciso descobri-la e valorizá-la.
Jesus lhe deu tal valor que convidou esse jovem para participar de sua missão de salvação. Tinha todas as condições para uma grande realização e uma grande obra.
Mas o Evangelho nos refere que esse jovem se entristeceu com o convite. Foi embora abatido e triste. Este episódio nos faz refletir mais uma vez sobre a riqueza da juventude. Não se trata, em primeiro lugar, de bens materiais, mas da própria vida, com os valores inerentes à juventude. Provém de uma dupla herança: a vida, transmitida de geração em geração, em cuja origem primeira está Deus, cheio de sabedoria e de amor; e a educação que nos insere na cultura, a tal ponto que, em certo sentido, podemos dizer que somos mais filhos da cultura e por isso da fé, do que da natureza. Da vida brota a liberdade que, sobretudo nesta fase se manifesta como responsabilidade. E o grande momento da decisão, numa dupla opção: uma quanto ao estado de vida e outra quanto à profissão. Responde à questão: que fazer com a vida?
Em outras palavras, a juventude se afigura como uma riqueza porque leva à descoberta da vida como um dom e como uma tarefa. O jovem do Evangelho percebeu a riqueza de sua juventude. Foi até Jesus, o Bom Mestre, para buscar uma orientação. Mas na hora da grande opção não teve coragem de apostar tudo em Jesus Cristo. Conseqüentemente saiu dali triste e abatido. É o que acontece todas as vezes que nossas decisões fraquejam e se tornam mesquinhas e interesseiras.
Sentiu que faltou generosidade, o que não lhe permitiu uma realização plena. Fechou-se sobre sua riqueza, tornando-a egoísta.
Jesus ressentiu-se com a tristeza e a mesquinhez do jovem que o viera procurar. Os Apóstolos, como todos e todas vós hoje, preenchem esta lacuna deixada por aquele jovem que se retirou triste e abatido. Eles e nós estamos alegres porque sabemos em quem acreditamos (2 Tim 1,12). Sabemos e testemunhamos com nossa própria vida que só Ele tem palavras de vida eterna (Jo 6,68). Por isso, com São Paulo, podemos exclamar: alegrai-vos sempre no Senhor (Fil 4,4).

7. Meu apelo de hoje, a vós jovens, que viestes a este encontro, é que não desperdiceis vossa juventude. Não tenteis fugir dela. Vivei-a intensamente. Consagrai-a aos elevados ideais da fé e da solidariedade humana.
Vós, jovens, não sois apenas o futuro da Igreja e da humanidade, como uma espécie de fuga do presente. Pelo contrário: vós sois o presente jovem da Igreja e da humanidade. Sois seu rosto jovem. A Igreja precisa de vós, como jovens,para manifestar ao mundo o rosto de Jesus Cristo, que se desenha na comunidade cristã. Sem o rosto jovem a Igreja se apresentaria desfigurada.

Queridos jovens, Cristo vos chama a serem santos. Ele mesmo vos convoca e quer andar convosco, para animar com Seu espírito os passos do Brasil neste início do terceiro milênio da era cristã. Peço à Senhora Aparecida que vos conduza, com seu auxílio materno e vos acompanhe ao longo da vida.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
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UMA VOLTA AO PORQUE

QUARTO ENCONTRO



1. A natureza do eu como promessa

“Aquilo que o homem procura no prazer é um infinito, e ninguém renunciaria jamais à esperança de alcançar este infinito”. A observação de Cesare Pavese encontra outras dramáticas confirmações no seu "Diário". Quando o escritor obteve o mais importante prêmio literário italiano, o Prêmio Strega, comentou: “Obtiveste o dom da fecundidade, és senhor de ti, do teu destino, és célebre como quem não procura sê-lo. Tudo isto, todavia, acabará. Esta profunda alegria tua, esta ardente saciedade é feita de coisas que não planejaste; e dada a ti. A quem, a quem, a quem agradecer, contra quem blasfemar no dia em que tudo acabar?” E no dia da entrega do Prêmio: “Em Roma, apoteose. E daí?”...
Mas entre as primeiras notas do seu diário já aparece uma observação capital: “É uma coisa grande o pensamento de que nada seja a nós devido. Alguém acaso jamais nos prometeu algo? Então, porque esperamos?”. Talvez ele não tenha pensado que a espera é a estrutura mesma da nossa natureza, a essência da nossa alma. Ela não é um cálculo: é dada. A promessa está na origem, desde a própria origem da nossa criação. Quem fez o homem o fez "promessa". Estruturalmente o homem espera; estruturalmente é mendigo, estruturalmente, a vida é promessa.

Recordo um trecho de um "blues" de Baldwin:
Richard: Também você, quando era moça, estava convencida de saber mais que seu pai e sua mãe, não é? Aposto que bem lá no fundo você achava isso, minha velha.
Mamma Henry: Nada disso. Achava, ao contrário, que iria conhecer mais coisas porque os meus tinham nascido escravos e eu tinha nascido livre.
Richard: E você conheceu de fato mais coisas?
Mamma Henry: Conheci aquilo que tinha que conhecer: cuidar do marido e criar os filhos no temor de Deus.
Richard: Você sabe que não acredito em Deus, vó.
Mamma Henry: Você não sabe o que diz. Não é possível que você não acredite em Deus. Não é você quem decide.
Richard: E quem decide?
Mamma Henry: A vida. A vida que está em você decide. Ela sabe de onde vem e acredita em Deus.

Conservo entre as lembranças de quando era professor no segundo grau a memória do trágico falecimento de um professor de latim e grego: morreu de repente enquanto estava dando aula. Nos funerais, eu estava um pouco à parte, enquanto levavam o caixão; voltando‑me, vi perto de mim um professor de filosofia, conhecido na escola como ateu. Seu rosto estava muito tenso e eu, certamente sem perceber, devo ter demorado alguns instantes observando‑o. Então, sentindo‑se talvez interrogado, exclamou: “A morte é o fato que está na origem de toda a filosofia!”
O horizonte ao qual o homem chega é como um sinal de morte; a morte é a origem e o estímulo de toda a procura, porque o abismo da pergunta humana encontra ali mesmo a contradição mais poderosa e descarada. Mas esta contradição não elimina a pergunta; antes, a exaspera.
Havia em Garbagnate, perto de Milão, um sanatório, para onde fui a fim de visitar uma pessoa. Quando saía, fui chamado por um enfermeiro: um doente estava morrendo e não tinham encontrado o capelão. Era um jovem de pouco mais de vinte anos, muito simples e puro. Impressionou‑me porque, na sua situação, parecia contar, serenamente, as batidas do coração e dizer: “Mais uma...”. Há mortes assim lúcidas até o último instante. Aquele jovem morreu tranqüilo. E refleti: se alguém tivesse consciência plena da morte que está chegando, a sua autoconsciência sentiria esgotadas suas perguntas? Ou as sentiria mais exasperadas? É como o impacto de alguém que está correndo contra um muro: quando uma energia está em tensão, encontrando um obstáculo, a tensão cresce, não se desfaz.


2. O senso religioso como dimensão

O ardor radical, implacável, que liberta o inexaurível movimento humano à procura do fundo último das coisas ‑ origem e destino ‑ plasma em estupenda imagem a primeira página de José e seus irmãos, de Thomas Mann:
“Profundo é o poço do passado; não deveríamos chamá‑lo insondável? Insondável, e talvez mais do que nunca quando falamos do passado do homem. Deste ser enigmático que recolhe em si a nossa existência, alegre por natureza, mas também mísera e dolorosa. É bem compreensível que o seu mistério forme o alfa e o ômega[1] de todos os nossos discursos, de todas as nossas perguntas, dê fogo e tensão a cada palavra nossa, urgência a cada problema nosso, porque justamente nesse caso acontece que, quanto mais se escava no subterrâneo mundo do passado, mais os primórdios do humano, da sua história, da sua civilização, revelam‑se de todo insondáveis, mesmo fazendo descer a sonda a profundidade fabulosa, cada vez mais retrocedendo na direção de abismos sem fundo. Usamos justamente a expressão 'cada vez mais', porque o insondável se diverte em brincar com a nossa paixão interrogante, oferece‑lhe pontos de chegada ilusórios, atrás dos quais, assim que atingidos, abrem‑se novos caminhos do passado, como acontece a quem, caminhando ao longo das margens do Mar do Norte, não encontra nunca o termo de seu caminho, porque atrás de cada terreno arenoso de dunas que deseja atingir outras amplas vastidões atraem para mais além, na direção de outras dunas”.
“O mistério ‑ diz Mann ‑ dá fogo e tensão a cada palavra nossa.” É a mesma metáfora que emprega Cesare Pavese na carta a uma professora, tradutora da Ilíada e da Odisséia para a coleção de Einaudi dirigida pelo grande escritor. Tendo‑lhe ela desejado que um despontar de exigência religiosa, entrevisto em seu último livro, E o galo cantou, pudesse desenvolver‑se e completar‑se, Pavese respondeu:
"Quanto à solução que a senhora deseja que eu encontre, creio que dificilmente irei além do capítulo XV do 'Galo'. Seja como for, não errou ao sentir que está aqui o ponto inflamado, o 'locus' de toda a minha consciência".
O sentido religioso e a capacidade da razão exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o “lócus” da consciência que o homem tem da existência.
Tal pergunta inevitável está em cada indivíduo e dentro do seu olhar para as coisas.

O filósofo norte‑americano Whitehead assim define a religião: “aquilo que o homem faz na sua solidão”. A definição é interessante, mesmo que não expresse todo o valor do qual parte a intuição que a gerou. De fato, a pergunta última é constitutiva do indivíduo e, nesse sentido, o indivíduo é totalmente só: ele mesmo é aquela pergunta e nada mais. Por isso, quando olhamos um homem, uma mulher, um amigo, alguém que passa, sem que ressoe em nós o eco daquela pergunta, daquela sede de destino que os constitui, nossa relação não é humana, e muito menos pode ser um relacionamento amoroso em qualquer nível: de fato, não respeita a dignidade do outro, não é adequado à dimensão humana do outro.
A mesma pergunta, porém, no mesmo instante em que define a minha solidão, coloca a raiz da minha companhia, porque significa que eu sou constituído por uma outra coisa, ainda que misteriosa.
Portanto, se quisermos completar a definição do filósofo americano, diremos que a religião é, sim, aquilo que o homem faz na sua solidão, mas é também aquilo em que descobre a sua essencial companhia. Tal companhia é mais original que a solidão, já que a estrutura de pergunta não é gerada pela minha vontade, mas me é dada. Por isso, antes da solidão está a companhia que abraça a minha solidão. Por isso, ela não é mais verdadeira solidão, mas grito de apelo à companhia escondida.
Um eco sugestivo se encontra no poema do Prêmio Nobel de Literatura de 1951, Pãr Lagerkvist:

É meu amigo um desconhecido,
Alguém que não conheço
Um desconhecido de muito longe...
Por ele meu coração está cheio de
Saudades
Por que ele não está junto de mim?
Talvez por que na realidade não exista?
Quem és tu que preenches o meu
Coração com tua ausência?
Que preenches toda a terra com tua ausência?


Conclusão

Só a hipótese de Deus, só a afirmação do mistério como realidade existente além do alcance da nossa capacidade de conhecimento corresponde à estrutura original do homem.
Se a natureza do homem está indomavelmente[2] à procura de uma resposta, se a estrutura do homem é esta pergunta irresistível e inexaurível, a pergunta é suprimida se não admitimos a existência de uma resposta.
Esta resposta só pode ser insondável. Só a existência do mistério é adequada à estrutura de mendicância[3] que o homem é. Ele é insaciável mendicância e o que lhe corresponde é algo que não é ele mesmo, que ele não pode dar a si mesmo, que não consegue medir, que o homem não sabe possuir.
“... O mundo sem Deus seria uma fábula contada por um idiota num acesso de raiva”, diz um personagem de Shakespeare, e nunca foi melhor definido o tecido de uma sociedade atéia. A vida, então, seria “uma fábula”, um sonho estranho, discurso abstrato ou imaginação exasperada; “contada por um idiota”, e por isto, sem capacidade de nexo, em pedaços, sem ordem real, sem uma possibilidade de previsão; “em um acesso de raiva”, isto é, onde a única metodologia de relacionamento é a violência, ou seja, a ilusão da posse.
Tudo o que até agora detalhamos, do ponto de vista existencial, procurou sublinhar aquilo que é em nós o senso religioso, como surge em nossa consciência: pergunta de totalidade que é constitutiva da nossa razão, isto é, da capacidade que o homem tem de conhecimento, da sua abertura para ir adiante e abraçar sempre mais a realidade.
Pelo simples fato de viver, um homem coloca esta pergunta, porque é a raiz da sua consciência do real. Não só ele coloca a pergunta como também a responde, afirmando um "último": porque pelo simples fato de que um homem vive cinco minutos, afirma a existência de um "quid" pelo qual vale a pena, em última instância, viver aqueles cinco minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável. Como o olho, ao se arregalar, descobre formas e cores, assim a razão, pelo simples fato de que se põe em movimento, afirma um "último", uma realidade última de que tudo se constitui; um destino último, sentido de tudo.
Por isso, a estas perguntas constitutivas nós damos uma resposta: consciente e explicitamente, ou prática e inconscientemente.

A afirmação da existência da resposta, como implicada no fato mesmo da pergunta, pode ser simbolizada na leitura da formula:
A®A1
Esta fórmula indica que A passa a A1, isto é , é símbolo do movimento, da mudança. Uma leitura inteligente da fórmula implica que um terceiro elemento esteja envolvido, um terceiro elemento aparentemente não explicitado, ainda que contido na fórmula. De fato, se não admitimos a existência de um X, para além da existência de A e de A1, deveríamos identificar A com A1, negando assim a "passagem" ou a diversidade entre A e A1, como a experiência torna evidente. Que uma coisa passe de uma posição a outra diferente significa que "outro" torna possível esta passagem. Dizer "o homem se transforma", ou "a vida passa", implica a existência de uma outra coisa, de outro modo seria uma afirmação que nega a si mesma, porque, sem admitir que exista um fator oculto a determinar a passagem, deveríamos admitir ‑ como já dissemos ‑ a identidade entre A e A1, o que consistiria na negação da fórmula acima apresentada, que é a descrição da experiência em ato.
[1] O alfa e o ômega: o início e o fim.
[2] Indomável: que não se pode domar.
[3] Mendicidade.

UMA VOLTA AO PORQUE

TERCEIRO ENCONTRO


1. Desproporção estrutural

A inexauribilidade[1] da resposta às exigências constitutivas do nosso eu é estrutural, isto é, de tal modo inerente à nossa natureza que representa a característica do seu ser.
Se chamamos provisoriamente "deus" o termo indefinível deste apelo, inscrito em nós mesmos, Rilke[2] proclama seu caráter definitivo em uma admirável poesia sua:

Apaguem‑se‑me os olhos: eu Te vejo,
Torna‑me surdo e ouvirei Tua voz,
Corta‑me os pés: por Teu caminho corro.

Sem voz a ti elevarei as preces.
Quebrem‑se‑me os braços e eu Te abraçarei,
Com novos braços de meu coração;
Se o coração parar, será o meu cérebro;
Se também ele arder, então meu sangue
Te acolherá, Senhor, em cada gota.

Dentro de um milhão de anos, a questão colocada por aquelas perguntas será talvez mais exasperada, mas não respondida.

Talvez se para voar tivesse eu asas,
E fosse às nuvens, estrelas contar,
Ou qual trovão, de cume em cume errasse,
Seria mais feliz, doce rebanho,
Seria mais feliz, cândida lua.
(G. Leopardi)

Cento e cinqüenta anos depois de Leopardi, o homem vaga "qual trovão, de cume em cume" com seus aviões a jato, e "conta as estrelas uma a uma" com seus satélites. Mas podemos dizer que o homem tenha‑se tornado, no entanto, ao menos um pouco mais feliz? Certamente não. Trata‑se de algo que está, por natureza, "além" de todo o movimento humano.
Na introdução de seu livro Da ciência à fé, o grande matemático Severi, muito amigo de Einstein, escreveu que quanto mais se aprofundava na pesquisa científica, mais era evidente para ele que tudo que descobria, à medida que avançava, era função de um absoluto "que se opunha como barreira elástica à sua superação com os meios cognitivos"[3]. Quanto mais sua pesquisa avançava, mais o horizonte ao qual chegava remetia a um outro horizonte, fazendo perceber sua conquista como única função que o impelia posteriormente para um "x", um "quid" que estava além das condições nas quais operava. Quando a pesquisa atingia um certo termo, o objeto da ação, x, se deslocava. (...)
Para alguém que esteja seriamente empenhado e atento a esta dinâmica, a incomensurabilidade[4] e a desproporção entre o objeto ao qual a indagação[5] chega e a profundidade das perguntas se torna mais evidente à medida que avança. Foi uma experiência semelhante que converteu Francesco Severi à religião, depois – ele mesmo diz –de cinqüenta anos de alta experiência científica. Em uma conversa que teve com Einstein poucos dias antes da morte deste, Severi discutiu também com o grande físico o tema religioso. A um certo ponto, Einstein lhe disse: " ... quem não admite o mistério insondável não pode nem ser um cientista". O que caracteriza o cientista é, de fato, o empenho profundo e aberto à pesquisa diante de qualquer fenômeno ou circunstância. Se não admite o x incomensarurável, se não admite a desproporção, que ninguém pode preencher, entre o horizonte último e a capacidade dos passos humanos, o homem elimina a categoria da possibilidade, a dimensão suprema da razão, pois somente um objeto incomensurável pode representar um convite indefinido para uma abertura estrutural no homem. A vida é fome, sede, paixão por um objeto último que domina sobre seu horizonte, embora esteja sempre para além dele. E é isto que, uma vez reconhecido, faz do homem alguém que busca incansavelmente.
Shakespeare escreveu em HamIet: "há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha tua vã filosofia". Sempre existirão mais coisas no céu e na terra ‑ isto é, na realidade ‑, que na nossa percepção e concepção da realidade ‑ isto é, na filosofia. Por isso, a filosofia deve possuir uma profunda humildade, deve ser uma tentativa inteiramente aberta e desejosa de adequação, complementação, correção: deve ser dominada pela categoria da possibilidade. Onde falta a categoria da possibilidade o passo é bloqueado. O passo já é pré‑definido pelo projeto do poder ou pelo projeto do próprio interesse. Uma sociedade ideológica tende, de fato, a congelar toda procura verdadeira: usa o poder que detém como instrumento para conter tal pesquisa dentro de certos limites de realização e de manifestação. Uma ditadura nunca tem interesse em que a pesquisa sobre o homem seja livre, porque uma pesquisa livre sobre o homem é o limite mais perigoso para o poder, e fonte incontrolável de possibilidades de oposição.
Quando ao ser humano vem a faltar a humilde consciência de que seu pensamento possa ser essencialmente reformulável, então começa a metamorfose: a filosofia torna‑se ideologia. E a metamorfose vai‑se cumprindo na medida em que pode ser considerado "normal" que se tenda a impor a própria concepção da vida. Assim, entra em cena a violência do poder.


2. Tristeza

À presunção do poder, cheia de censuras e de renegações, corresponde, no indivíduo, no homem real, a grande tristeza, caráter fundamental da vida consciente de si, "desejo de um bem ausente", segundo Santo Tomás.
A incomensurabilidade do objeto verdadeiramente procurado com a capacidade humana de "agarrá‑lo" leva a viver acima de tudo a experiência de uma posse, por natureza, fugitiva.

Seja o que for que digas ou faças,
há dentro um grito:
não é por isso, não é por isso!


E assim tudo reenvia
a uma pergunta secreta:
o ato é pretexto (...)
Na iminência de Deus
a vida acaba
com as reservas caducas,
enquanto cada um se agarra
a algum bem que lhe grita: adeus!
(C. Rebora)

A tristeza brota, assim, da "força operosa que nos fadiga a cada movimento", e a "fadiga" de Foscolo se torna "fastio"[6], a inquietação leopardiana despertada por:

...um espinho angustiante
Que me faz mais que nunca estar distante
de encontrar paz e lugar.

Estar consciente do valor de tal tristeza identifica‑se com a consciência da estatura da vida e com o sentimento de seu destino. Assim, em Os demônios, Dostoievsky pode contar nobremente:

“... Soubera tocar no coração do seu amigo as cordas mais profundas e provocar nele a primeira sensação, ainda indefinida, daquela tristeza eterna e santa que alguma alma eleita, tendo‑a uma vez saboreado e conhecido, depois não trocará nunca mais por uma satisfação barata (há certos amadores feitos de tal forma que têm esta tristeza mais querida do que a satisfação mais radical, admitindo que tal satisfação seja possível)".

Se a tristeza é a centelha que se acende pela experiência da "diferença de potencial" entre a destinação ideal e a não realização histórica, o achatamento daquela "diferença" ‑ seja como for que aconteça ‑ cria o oposto lógico da tristeza, o desespero:

"Somente a idéia constante de que existe algo de infinitamente mais justo e mais feliz do que eu me enche de ternura sem medida e de glória, quem quer que eu seja, o que quer que eu tenha feito. Para o homem, é muito mais indispensável do que a própria felicidade saber, e a todo momento crer que existe, em certo lugar, uma felicidade perfeita e calma, para todos e para tudo... Toda a lei da existência humana consiste só nisto: que o homem possa se dobrar diante do infinitamente grande. Se os homens viessem a ser privados do infinitamente grande, eles não poderiam mais viver e morreriam presos do desespero".
(F. Dostoievsky)

Talvez o comentário de uma jovem numa carta a um amigo não seja de menor peso que a intuição do grande russo: "Se as coisas fossem somente aquilo que vemos, estaríamos desesperados".
Mas nenhuma página da literatura, talvez, expresse tanto a estrutura filosófica e o dinamismo existencial cotidiano dessa tristeza como a última parte de "A noite do dia de festa", de Leopardi:

... Ai, pela rua, não longe, ouço o canto
Do artesão solitário, que regressa
Noite alta ao casebre após folgar.
E ao pensar que sem quase deixar traço,
No mundo tudo passa, cruelmente,
Sinto que o coração se me constrange.
Passou o dia feriado e o comum vem,
E lá se vai o tempo assim também,
Todo o humano evento.
Onde está o som dos povos que passaram,
Onde a fama do célebre ancestral,
De Roma o império, armas e fragor,
Que pela terra e pelo mar andaram?
Tudo é silêncio e paz, repousa o mundo.
E deles não há mais sequer lembrança.
Na minha infância, quando ansiosamente,
Se esperava o feriado, e ao terminar,
Quando eu com insônia e magoado,
Jazia no leito, já o coração
Me confrangia um canto que além
Nos caminhos se ouvia a falecer
Aos poucos na distância.

[1] Caráter do que não se pode exaurir: nunca atingimos a plena resposta, o fim da resposta.
[2] Poeta alemão.
[3] Tudo o que ele descobria nunca era uma resposta total, mas sempre dependia de outra coisa, era como uma parte da resposta total, absoluta, que ele não podia dominar com a inteligência: cada vez que dela se aproximava, ela parecia fugir para mais longe.
[4] Caráter do que não se pode medir.
[5] Pesquisa.
[6] sentimento de enfado, aborrecimento, tédio.