QUARTO ENCONTRO
1. A natureza do eu como promessa
“Aquilo que o homem procura no prazer é um infinito, e ninguém renunciaria jamais à esperança de alcançar este infinito”. A observação de Cesare Pavese encontra outras dramáticas confirmações no seu "Diário". Quando o escritor obteve o mais importante prêmio literário italiano, o Prêmio Strega, comentou: “Obtiveste o dom da fecundidade, és senhor de ti, do teu destino, és célebre como quem não procura sê-lo. Tudo isto, todavia, acabará. Esta profunda alegria tua, esta ardente saciedade é feita de coisas que não planejaste; e dada a ti. A quem, a quem, a quem agradecer, contra quem blasfemar no dia em que tudo acabar?” E no dia da entrega do Prêmio: “Em Roma, apoteose. E daí?”...
Mas entre as primeiras notas do seu diário já aparece uma observação capital: “É uma coisa grande o pensamento de que nada seja a nós devido. Alguém acaso jamais nos prometeu algo? Então, porque esperamos?”. Talvez ele não tenha pensado que a espera é a estrutura mesma da nossa natureza, a essência da nossa alma. Ela não é um cálculo: é dada. A promessa está na origem, desde a própria origem da nossa criação. Quem fez o homem o fez "promessa". Estruturalmente o homem espera; estruturalmente é mendigo, estruturalmente, a vida é promessa.
Recordo um trecho de um "blues" de Baldwin:
Richard: Também você, quando era moça, estava convencida de saber mais que seu pai e sua mãe, não é? Aposto que bem lá no fundo você achava isso, minha velha.
Mamma Henry: Nada disso. Achava, ao contrário, que iria conhecer mais coisas porque os meus tinham nascido escravos e eu tinha nascido livre.
Richard: E você conheceu de fato mais coisas?
Mamma Henry: Conheci aquilo que tinha que conhecer: cuidar do marido e criar os filhos no temor de Deus.
Richard: Você sabe que não acredito em Deus, vó.
Mamma Henry: Você não sabe o que diz. Não é possível que você não acredite em Deus. Não é você quem decide.
Richard: E quem decide?
Mamma Henry: A vida. A vida que está em você decide. Ela sabe de onde vem e acredita em Deus.
Conservo entre as lembranças de quando era professor no segundo grau a memória do trágico falecimento de um professor de latim e grego: morreu de repente enquanto estava dando aula. Nos funerais, eu estava um pouco à parte, enquanto levavam o caixão; voltando‑me, vi perto de mim um professor de filosofia, conhecido na escola como ateu. Seu rosto estava muito tenso e eu, certamente sem perceber, devo ter demorado alguns instantes observando‑o. Então, sentindo‑se talvez interrogado, exclamou: “A morte é o fato que está na origem de toda a filosofia!”
O horizonte ao qual o homem chega é como um sinal de morte; a morte é a origem e o estímulo de toda a procura, porque o abismo da pergunta humana encontra ali mesmo a contradição mais poderosa e descarada. Mas esta contradição não elimina a pergunta; antes, a exaspera.
Havia em Garbagnate, perto de Milão, um sanatório, para onde fui a fim de visitar uma pessoa. Quando saía, fui chamado por um enfermeiro: um doente estava morrendo e não tinham encontrado o capelão. Era um jovem de pouco mais de vinte anos, muito simples e puro. Impressionou‑me porque, na sua situação, parecia contar, serenamente, as batidas do coração e dizer: “Mais uma...”. Há mortes assim lúcidas até o último instante. Aquele jovem morreu tranqüilo. E refleti: se alguém tivesse consciência plena da morte que está chegando, a sua autoconsciência sentiria esgotadas suas perguntas? Ou as sentiria mais exasperadas? É como o impacto de alguém que está correndo contra um muro: quando uma energia está em tensão, encontrando um obstáculo, a tensão cresce, não se desfaz.
2. O senso religioso como dimensão
O ardor radical, implacável, que liberta o inexaurível movimento humano à procura do fundo último das coisas ‑ origem e destino ‑ plasma em estupenda imagem a primeira página de José e seus irmãos, de Thomas Mann:
“Profundo é o poço do passado; não deveríamos chamá‑lo insondável? Insondável, e talvez mais do que nunca quando falamos do passado do homem. Deste ser enigmático que recolhe em si a nossa existência, alegre por natureza, mas também mísera e dolorosa. É bem compreensível que o seu mistério forme o alfa e o ômega[1] de todos os nossos discursos, de todas as nossas perguntas, dê fogo e tensão a cada palavra nossa, urgência a cada problema nosso, porque justamente nesse caso acontece que, quanto mais se escava no subterrâneo mundo do passado, mais os primórdios do humano, da sua história, da sua civilização, revelam‑se de todo insondáveis, mesmo fazendo descer a sonda a profundidade fabulosa, cada vez mais retrocedendo na direção de abismos sem fundo. Usamos justamente a expressão 'cada vez mais', porque o insondável se diverte em brincar com a nossa paixão interrogante, oferece‑lhe pontos de chegada ilusórios, atrás dos quais, assim que atingidos, abrem‑se novos caminhos do passado, como acontece a quem, caminhando ao longo das margens do Mar do Norte, não encontra nunca o termo de seu caminho, porque atrás de cada terreno arenoso de dunas que deseja atingir outras amplas vastidões atraem para mais além, na direção de outras dunas”.
“O mistério ‑ diz Mann ‑ dá fogo e tensão a cada palavra nossa.” É a mesma metáfora que emprega Cesare Pavese na carta a uma professora, tradutora da Ilíada e da Odisséia para a coleção de Einaudi dirigida pelo grande escritor. Tendo‑lhe ela desejado que um despontar de exigência religiosa, entrevisto em seu último livro, E o galo cantou, pudesse desenvolver‑se e completar‑se, Pavese respondeu:
"Quanto à solução que a senhora deseja que eu encontre, creio que dificilmente irei além do capítulo XV do 'Galo'. Seja como for, não errou ao sentir que está aqui o ponto inflamado, o 'locus' de toda a minha consciência".
O sentido religioso e a capacidade da razão exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o “lócus” da consciência que o homem tem da existência.
Tal pergunta inevitável está em cada indivíduo e dentro do seu olhar para as coisas.
O filósofo norte‑americano Whitehead assim define a religião: “aquilo que o homem faz na sua solidão”. A definição é interessante, mesmo que não expresse todo o valor do qual parte a intuição que a gerou. De fato, a pergunta última é constitutiva do indivíduo e, nesse sentido, o indivíduo é totalmente só: ele mesmo é aquela pergunta e nada mais. Por isso, quando olhamos um homem, uma mulher, um amigo, alguém que passa, sem que ressoe em nós o eco daquela pergunta, daquela sede de destino que os constitui, nossa relação não é humana, e muito menos pode ser um relacionamento amoroso em qualquer nível: de fato, não respeita a dignidade do outro, não é adequado à dimensão humana do outro.
A mesma pergunta, porém, no mesmo instante em que define a minha solidão, coloca a raiz da minha companhia, porque significa que eu sou constituído por uma outra coisa, ainda que misteriosa.
Portanto, se quisermos completar a definição do filósofo americano, diremos que a religião é, sim, aquilo que o homem faz na sua solidão, mas é também aquilo em que descobre a sua essencial companhia. Tal companhia é mais original que a solidão, já que a estrutura de pergunta não é gerada pela minha vontade, mas me é dada. Por isso, antes da solidão está a companhia que abraça a minha solidão. Por isso, ela não é mais verdadeira solidão, mas grito de apelo à companhia escondida.
Um eco sugestivo se encontra no poema do Prêmio Nobel de Literatura de 1951, Pãr Lagerkvist:
É meu amigo um desconhecido,
Alguém que não conheço
Um desconhecido de muito longe...
Por ele meu coração está cheio de
Saudades
Por que ele não está junto de mim?
Talvez por que na realidade não exista?
Quem és tu que preenches o meu
Coração com tua ausência?
Que preenches toda a terra com tua ausência?
Conclusão
Só a hipótese de Deus, só a afirmação do mistério como realidade existente além do alcance da nossa capacidade de conhecimento corresponde à estrutura original do homem.
Se a natureza do homem está indomavelmente[2] à procura de uma resposta, se a estrutura do homem é esta pergunta irresistível e inexaurível, a pergunta é suprimida se não admitimos a existência de uma resposta.
Esta resposta só pode ser insondável. Só a existência do mistério é adequada à estrutura de mendicância[3] que o homem é. Ele é insaciável mendicância e o que lhe corresponde é algo que não é ele mesmo, que ele não pode dar a si mesmo, que não consegue medir, que o homem não sabe possuir.
“... O mundo sem Deus seria uma fábula contada por um idiota num acesso de raiva”, diz um personagem de Shakespeare, e nunca foi melhor definido o tecido de uma sociedade atéia. A vida, então, seria “uma fábula”, um sonho estranho, discurso abstrato ou imaginação exasperada; “contada por um idiota”, e por isto, sem capacidade de nexo, em pedaços, sem ordem real, sem uma possibilidade de previsão; “em um acesso de raiva”, isto é, onde a única metodologia de relacionamento é a violência, ou seja, a ilusão da posse.
Tudo o que até agora detalhamos, do ponto de vista existencial, procurou sublinhar aquilo que é em nós o senso religioso, como surge em nossa consciência: pergunta de totalidade que é constitutiva da nossa razão, isto é, da capacidade que o homem tem de conhecimento, da sua abertura para ir adiante e abraçar sempre mais a realidade.
Pelo simples fato de viver, um homem coloca esta pergunta, porque é a raiz da sua consciência do real. Não só ele coloca a pergunta como também a responde, afirmando um "último": porque pelo simples fato de que um homem vive cinco minutos, afirma a existência de um "quid" pelo qual vale a pena, em última instância, viver aqueles cinco minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável. Como o olho, ao se arregalar, descobre formas e cores, assim a razão, pelo simples fato de que se põe em movimento, afirma um "último", uma realidade última de que tudo se constitui; um destino último, sentido de tudo.
Por isso, a estas perguntas constitutivas nós damos uma resposta: consciente e explicitamente, ou prática e inconscientemente.
A afirmação da existência da resposta, como implicada no fato mesmo da pergunta, pode ser simbolizada na leitura da formula:
A®A1
Esta fórmula indica que A passa a A1, isto é , é símbolo do movimento, da mudança. Uma leitura inteligente da fórmula implica que um terceiro elemento esteja envolvido, um terceiro elemento aparentemente não explicitado, ainda que contido na fórmula. De fato, se não admitimos a existência de um X, para além da existência de A e de A1, deveríamos identificar A com A1, negando assim a "passagem" ou a diversidade entre A e A1, como a experiência torna evidente. Que uma coisa passe de uma posição a outra diferente significa que "outro" torna possível esta passagem. Dizer "o homem se transforma", ou "a vida passa", implica a existência de uma outra coisa, de outro modo seria uma afirmação que nega a si mesma, porque, sem admitir que exista um fator oculto a determinar a passagem, deveríamos admitir ‑ como já dissemos ‑ a identidade entre A e A1, o que consistiria na negação da fórmula acima apresentada, que é a descrição da experiência em ato.
[1] O alfa e o ômega: o início e o fim.
[2] Indomável: que não se pode domar.
[3] Mendicidade.
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